Pensar África


Duas mesas foram realizadas para oferecer um panorama sobre a trajetória das lutas de africanos e afrodescendentes - no Brasil e em Portugal - nos últimos anos em uma semana simbólica como a da Consciência Negra [tomando como inspiração a sua existência na agenda anual brasileira] e tendo como subtítulo: a herança do passado, o caminho presente. A primeira composta por Michel Cahen (CNRS/LAM) e Mojana Vargas (CEI/IUL) e a segunda por Joacine Moreira (CEI/IUL) e Cristina Roldão (CIES/IUL).


O historiador francês, especialista em África lusófona, discorreu sobre o mito do não-racismo na tentativa de enfraquecer a inocente e conveniente ideia de uma colonização diferenciada por parte dos portugueses sobre os territórios africanos dominados por séculos. Para isso, destaca que houve uma colonização tardia - em se tratando da conquista da composição territorial atual correspondente ao fim do século XIX e durante o XX - além de uma propaganda ditatorial fundada no lusotropicalismo, de inspiração freyriana, e estimuladora da mestiçagem como forma de portugalização - e não apenas uma civilização combinada com evangelização desprovida de exploração. Antes do XIX, contudo, essa harmonia era combatida e temida - apenas surgindo para atender ao formato e aos interesses de um republicanismo colonialista. Ao pontuar a migração de portugueses do campo para os espaços urbanos coloniais, deixa-se claro que a pobreza não anula ou diminui o racismo frente aos africanos: é o que denomina como racismo de proximidade. E, para finalizar sua explanação, enfatiza que a ideologia da assimilação estruturava-se sobre várias exigências (costumes, língua e profissão), a ideologia colonial não foi abandonada com a Revolução dos Cravos e que, no final da década de 1980, Portugal abraça a lusofonia para alimentar uma ilusão patriótica favorável à sua inserção na União Europeia.

A doutoranda em Estudos Africanos, na sequência, faz uma breve digressão sobre a História da Escravidão com a finalidade de aproximá-la aos dados brasileiros relacionados às recentes condições sociais de brancos e pardos/negros (analfabetismo, escolaridade, renda salarial, violência urbana, feminicídio, presença universitária, entre outros). Esse primeiro momento é usado para a provocação lançada em seguida: o que se sabe sobre a população negra portuguesa? Pressupõe-se que o racismo estrutural brasileiro é semelhante ao português e percebe-se um conformismo em saber pouco. Isso é notório pela ausência de alunos, docentes e publicações ligadas ao universo afrodescendente, por exemplo. A presença da temática no campo jornalístico parece insuficiente visto que a esfera pública e a própria academia, instâncias de poder/saber, mostram-se inalteráveis e inertes. Não existem dados. Não se deseja "abrir esse barril"!


A investigadora Joacine Moreira inicia sua fala sobre o poder semântico dos conceitos históricos como forma de blindar a História de Portugal (colônia, colono, colonialismo, colonização, anticolonial, descolonização, neocolonialismo, pós-colonial). Consequentemente, frisa a centralidade do colonialismo na História da África (pré-colonial, colonial e pós-colonial) e a necessidade de (re)escrever a História ressignificando - ou substituindo - seus conceitos para transformar o discurso e sua compreensão. Compartilha exemplos: guerras coloniais x lutas de libertação; descolonização x independências; "retornados" como problema do colonialismo ou da emancipação. Questiona o limite entre o racismo e a xenofobia antes de apresentar as derivações do racismo (exclusão [pobreza, paralização e dúvida], violência, invisibilidade [activismo, politização e resistência] e negação/normalização) capazes de promover alternativas para a construção de uma consciência negra. Magnificamente, conclui sua apresentação lembrando que não basta combater a mentalidade colonial, o capitalismo e o racismo sem combater o machismo: são esses quatro pilares que sustentam as relações de poder e de opressão.

Cristina Roldão, socióloga dedicada ao questionamento acerca da não-recolha de dados étnico-raciais em Portugal, inicia sua apresentação lembrando da Década dos Afrodescendentes [2015-2024] pela ONU - e a indiferença estatal -, fazendo um apelo ao projeto de um memorial às vítimas da escravatura e a conveniência de uma desmemória. A justificativa da não-recolha, de acordo com as instâncias de poder, é a inconstitucionalidade. Entretanto, diversos exemplos de documentos oficiais que fazem uso de dados proibidos, segundo a lei, são compartilhados a fim de ilustrar o paradoxo existente no tempo presente. Nota-se que há uma resistência de permitir a recolha e sua análise para evitar a inevitável elaboração de políticas públicas específicas para uma parte da população - discriminada e marginalizada. Uma atual e leve mudança no discurso estatal sobre a recolha destes dados não garante o compromisso com os passos posteriores necessários ao retrato a ser tirado nem a participação dos movimentos sociais. Em outras palavras, o que está em jogo não é apenas a recolha dos dados, mas sua análise, as problemáticas reveladas e as soluções construídas. Os dados serviriam, além disso, para a elaboração de contra-narrativas a fim de constatar a manutenção de um racismo estrutural, e não excepcional, em Portugal e desmitificar a ideia de uma portugalidade branca. E muito mais: serviria como uma forma direta e prática de potencializar a conscientização/mobilização capaz de evidenciar os problemas da desigualdade social gerados pelos processos históricos. Trocando em miúdo: teme-se a recolha de dados porque teme-se o impacto de seu retrato. Ela finaliza sua apresentação chamando a atenção para (auto)alimentação acadêmica, obstáculo quase indestrutível, e os seus múltiplos benefícios.

Nenhum comentário:

Postar um comentário