Na íntegra, minha primeira participação em uma ação de formação promovida pela Associação de Professores de História de Portugal. Participação em forma de trabalho final. Uau!
INTRODUÇÃO
Essa é a minha
primeira participação em uma ação de formação promovida pela Associação de
Professores de História. Sou brasileiro, licenciado em História e mestre em
Sociologia da Educação. Tenho 33 anos, 14 anos de docência e um pouco mais de 2
anos como imigrante em Portugal. Adquiri conhecimento sobre a ação de formação
pelos professores António Camões Gouveia e Raquel Pereira Henriques. Cultivo um
apreço significante pela temática ao longo da minha trajetória académica e
profissional e gostei bastante das distintas explanações. Relatarei um pouco
sobre as minhas impressões acerca dos dois dias de encontro e trocas e a visita
realizada, posteriormente, com duas colegas – académicas, ativistas e negras –
na exposição homônima à ação de formação, Racismo e Cidadania, organizada pelo Padrão dos Descobrimentos.
No primeiro
momento, debruçar-me-ei sobre os dois dias de formação: a articulação entre os
manuais escolares e o conteúdo da exposição elaborada pela professora Raquel
Pereira Henriques; o olhar atento do professor Jorge Alberto sobre as
referências contidas nos manuais escolares e alguns dados correspondentes a
presença de temáticas específicas; as abordagens do professor António Camões
Gouveia fundamentadas no vínculo educação, museu e museu como educação; a
apresentação dos vídeos educativos idealizados e planeados por Hugo Ribeiro da
Silva; e os esclarecimentos do António Viana ligados à estrutura e aos
significantes da exposição.
Como não leciono
ainda em terras portuguesas e senti falta da presença negra na ação de
formação, convidei duas colegas para apreciá-la com o objetivo de coletar
considerações acerca da exposição e tornar a visita um exercício. Compartilho,
no segundo momento, sob breve e leve inspiração etnográfica, o nosso encontro
com as obras selecionadas no interior de um monumento muito importante e ímpar
– tanto para a História de Portugal como para a História das Colonizações.
Importância, contudo, bem paradoxal.
Não seria um
exagero acentuar que a exposição faz parte da programação da Capital
Ibero-Americana da Cultura, destaca Lisboa e todo um ideário de centro
cosmopolita e multicultural. Assim como não podemos ignorar o contexto local da
exposição: um monumento central e imponente nos trilhos turísticos da capital
do antigo império ultramarino. Não é difícil reconhecer o poder simbólico do
que está em evidência.
A temática é
precisa e urgente e o público vitimado está ainda distante. Tanto da
organização da exposição como do acesso e da divulgação. Por isso, mediei o
diálogo sobre dias de formação, a exposição e os olhares negros na tentativa de
sondar o grau de distância entre as devidas partes. Distâncias essas que, em se
tratando de educação – e educação histórica –, deveria ser combatida para ser
bem apr(e)endida.
Reforço que esse
exercício foi muito mais do que uma visitação de imigrante e filhas de
imigrantes com “síndrome de colonizado”. Não, absolutamente. Esse exercício foi
fundamental para constatarmos que há muito o que fazer para tornar o assunto
mais presente nas escolas e nos manuais; mais fiel e próximo à realidade. Mais
civilizatório e mais humano. Menos politicamente correto. Menos datado,
engessado, folclórico e previsível. Nada natural.
DOS DIAS DE
FORMAÇÃO
A leitura da
nota de abertura de um livro (CALDEIRA, 2017) foi uma ótima escolha para
iniciar os dois dias de formação. Dois pontos chamaram mais a minha atenção:
uma citação do Sentido do Humanismo onde lê-se “Nenhum povo da Terra foi mais dono de homens do que nós fomos” e a convicção do autor “de que, através dos percursos individuais, podemos conhecer com maior rigor as experiências colectivas”. Foi após a leitura que percebi que estava em um auditório composto por profissionais da Educação e da História, brancos e portugueses, dispostos a discutir Racismo e Cidadania. Coube a mim, escutar e observar com bastante atenção e cuidado para não me perder.
O material
elaborado e oferecido pela professora Raquel Pereira Henrique, na sequência,
disponibilizou ao participante uma articulação, direta e indireta, entre os
programas e as metas curriculares, os manuais e scolares e os seis núcleos da
exposição. Nada melhor para indicar com precisão alguns caminhos possíveis de
abordagens e discussões com os alunos. Ou seja, nada melhor para atender às
exigências ideais e nacionais do Ensino da História. Serviço pronto para evitar
a fadiga docente. E, no meio da leitura técnica, surge a constatação de que os
ciganos estão fora dos manuais – como, coincidente e consequentemente, da
exposição.
Os dados
apresentados pelo professor Jorge Alberto ilustram bem os principais pontos
presentes nos documentos curriculares e, inevitavelmente, nos manuais
escolares. Destaca-se o escravo e a escravatura (24,6%) e ganha corpo uma
reflexão coletiva sobre a dificuldade de dissociar a tríade
escravo-africano-negro. Como discutir o racismo se essa tríade parece tão
indestrutível? Se parece tão, historicamente, natural? Seguimos ao almoço com
essas questões para tentar digerir.
A explanação do
professor António Camões Gouveia, relacionada à ideia do museu como espaço
educacional por si só, lembrou-me bastante o estudo francês sobre os museus
europeus e seus públicos (BORDIEU, 2003a). Enquanto o museu se prepara para
apresentar algo é preciso que o público se prepare para receber: o museu
prepara-se com seus formatos sacralizados, enquanto o público prepara a bagagem
que tem para ler. É nesta troca que está e há a educação. Concordo. Mas esta
educação não seria mais rica e transformadora se o museu dessacralizasse um
pouco seus formatos e priorizasse mais o acolhimento de diferentes bagagens?
Quais são os interesses e os poderes atuantes sobre os museus? Seria a escola
semelhante ao museu: mais um aparelho de reprodução (BOURDIEU, 2008) do que de
transformação social? Que Educação é essa que mais reproduz do que transforma?
Cultivadas as questões e inquietações, preparamo-nos para apreciar em primeira
mão os vídeos educativos idealizados e compartilhados pelo Hugo Ribeiro da
Silva.
Ao saber que os
vídeos tinham como destino os olhares de alunos do Ensino Secundário e
professores, várias questões vieram a mente, mesmo desconhecendo a realidade
escolar portuguesa, e algumas seguiram para o apresentador por meio de e-mail –
na tentativa de parabenizar pela coragem de apresentar algo inacabado e de
contribuir com sugestões para uma finalização qualitativa. Listo aqui apenas
três pontos sobre os vídeos dentre alguns: I) a ideia de África “atrasada,
primitiva e selvagem” antes da chegada dos europeus é reforçada pelas imagens e
bem distante dos estudos de africanistas; II) o uso do termo sobrenatural para contemplar os fundamentos religiosos do politeísmo africano, como se fosse algo incompreensível e inexplicável, faz com que eles sejam considerados muito diferente dos demais (da Antiguidade Oriental e Clássica); e, III) a onipresença de académicos brancos (com exceção da professora baiana) e a ausência de vozes dos movimentos sociais – além da falta de representatividade negra entre os apresentadores do os argumentos históricos e culturais e silenciam e/ou simplificam os problemas último vídeo – inibem uma identificação e um coerente esclarecimento, limitam do racismo cotidiano.
Fiquei impressionado.
De facto, há um muro dentro das universidades que torna inacessível o mergulho
investigativo em algumas temáticas como se elas fossem proibidas, tensas e
veladas. Entendo algumas circunstâncias, mas lamento a manutenção deste muro.
Muito se perde. Tenho acompanhado, ainda superficialmente, a abordagem do tema
em diversos meios e percebo que há uma real dificuldade e resistência para
(re)pensar a História de Portugal. É como se, para isso, fosse preciso
desprezar uma trajetória gloriosa – que não é e não está visível aos olhos das
novas gerações. Conta-se uma história passada e violenta-se, moralmente,
culturas e humanos no presente. O que fazer? Depois de um sábado bastante
atípico e produtivo, várias questões frutíferas me acompanha(ra)m.
Na manhã do
segundo dia, sob a companhia de António Viana, tivemos o privilégio de conferir
os bastidores de uma exposição. Foi bastante interessante ver o espaço
inacabado e escutar uma série de detalhes que permeiam a sua organização. Das
paredes às cores, das luzes à proteção das obras, dos textos e das legendas ao
olhar do visitante. Tudo muito bem planeado para apresentar ao público mais do
que um tema polêmico através de um acervo, criteriosamente, selecionado, mas
reforçar e rememorar (um)a História de Portugal.
DA VISITA À
EXPOSIÇÃO
A visita deu-se
ao final da tarde de uma segunda-feira, 15 de maio deste ano, e o encontro foi
ao lado do Padrão dos Descobrimentos. Cheguei um pouco antes das minhas
convidadas e foi interessante observar o contraste da sua chegada: duas negras,
mestrandas, em meio à circulação de turistas brancos. Expliquei por alguns
minutos o que havia sido apresentado nos dias de formação e qual era o objetivo
da nossa visita: avaliar o poder educativo da exposição. Antes de entrar,
dei-lhes os ingressos, e percebi um “embrulho no estômago” ao apreciar dois
poemas do Fernando Pessoa a exaltar Portugal e toda a sua grandiosidade
(ultra)passada.
A visita não
demorou muito tempo. As colegas usufruíram os textos e as legendas para fazer
as suas leituras das obras e caminharam sem muita hesitação como sem muita
surpresa. A primeira parada nítida foi frente ao quadro Infante D. Afonso e um pajem negro (1653), de José Avelar Rebelo - ao lado de instrumentos de repressão. O destaque dado à obra pela organização do espaço e pelo jogo de luzes fez parecer que estava se destacando algo de bonito, de exótico, de banal. A aproximação entre a “brincadeira” do quadro e a violência dos instrumentos não foi muito bem vista por elas, acredito. Quase sem sentido como uma anedota sem graça. A segunda nítida parada foi frente às rosto do Theatrum, de Ortelius, dos postais imagens clássicas dos tumbeiros, da representação dos continentes na página de africanos e das piadas racistas contidas na publicidade. A previsibilidade das imagens gerou um silêncio previsível. Era como se elas buscassem a cidadania na exposição e só enxergassem o racismo.
Algumas palavras
aceleraram os passos das visitantes, como o mundo colonial português. Essa como outras – expansão, império, pioneirismo, diversidade cultural, multiculturalismo -, como bem sabemos, são termos muitas vezes com poder de conceitos científicos. São palavras que podem ter significados diferentes de acordo com seus leitores. Essa questão vocabular entra na pauta das reflexões sobre o Ensino da História visto que ela, querendo camufladas e urgentes, válidas para humanizar a compreensão em relação aos ou não querendo, transmite uma versão clássica e hegemônica e omite outras, tão dominados e vencidos por séculos; às particularidades da dominação e às circunstâncias das vitórias.
A terceira e
última parada foi na reta final da exposição – ao passar pela erotização das nativas e pelos registos dos zoos humanos. Já era familiar o trabalho de dois artistas, os angolanos Kiluanji Kia Henda e Nástio Mosquito. Entretanto, de acordo com o texto, parecia que o fazer outras palavras, fez-se entender que a produção artística dos negros adquiria artístico possuía algum tipo dependência com o Ocidente e com Portugal. Em legitimidade naquele espaço e servia como exemplo do aprendizado adquirido por enquadrarem-se nos moldes europeus. O estopim acelerador do fim da visita foram eles ao se deixarem relacionar com a cultura capitalista e colonizadora; ao os excertos legislativos que, querendo ou não querendo, davam a entender que os problemas vinculados ao racismo estavam resolvidos; que toda a tragédia histórica acabou e que se vivia em um país absolvido e bem resolvido. Ilusão.Acabada a visita, seguimos para um bate-papo no Jardim do Império.
Ao serem questionadas
sobre o poder educativo da exposição, as duas concordaram que o que foi visto
não difere muito da mentalidade portuguesa comum e pulsante fora do Padrão dos
Descobrimentos. O conteúdo reunido na exposição, mesmo com seus frágeis textos
e legendas, em quase nada difere do discurso presente nos manuais escolares e
dos professores – maioritariamente, brancos. Apreciaram, enfim, mais do mesmo –
sem desmerecer, claro, a qualidade das obras, a sofisticação do ambiente, o(s)
contexto(s) da exposição e o local escolhido.
Lamentaram, em
silêncio, por perceber que mais uma vez falou-se em racismo sem dar voz aos
não-brancos, não-cristãos e não-europeus. Mais uma vez, prevaleceu a História
eurocêntrica: bem-sucedida e civilizatória, naturalizada e secularizada.
Tocou-se em um assunto delicado com muita delicadeza e sem muita propriedade.
Parece até, conclusão delas, que para se conseguir a cidadania tem de se passar
pelo racismo. É como se o racismo fosse o obstáculo a ser superado para se
alcançar a cidadania. Mas como ultrapassá-lo sendo cigano, negro, muçulmano,
filhos negros de imigrantes nascidos em território português?
Ao pensar em
como essa exposição seria lida pelos alunos (não-brancos e não-portugueses) da
educação pública, as duas colegas não tardaram muito em imaginar a ideia de
reforçar o embranquecimento cultural. Algo mais torturante do que ter de se
desvincular e negar sua cultura, sua identidade, a fim de ser respeitado e
tratado como cidadão? Que peso tem isso para crianças e jovens em formação? O
que pensar desse Ensino da História que não prepara a geração mais nova para o
mundo real e para o tempo presente?
Esses
questionamentos finalizaram nosso encontro já no início da noite. Tornou-se
preciso nos despedir e nos organizar para mais um dia de trabalho e estudos
depois de constatar que ainda há muito o que fazer para essas discussões e
essas temáticas ganharem mais espaços e mais vozes em Portugal. Mais
representatividade e mais visibilidade. Outras abordagens. Outras, dissociadas
de orgulho, romantismo e nacionalismo. Menos violentas e mais humanas. Mais
críticas e menos ingênuas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Limitar-me-ei,
nestas linhas últimas, a ressaltar a importância desta ação de formação apesar
das minhas críticas e impressões e dos olhares aguçados das colegas na visita
guiada. Indiscutivelmente, este tema não pode deixar de fazer parte das pautas
e das problemáticas do Ensino da História – seja em Portugal ou em outro lugar
do mundo. Mesmo sem a presença e a voz negras, é preciso tocar neste assunto. É
preciso (re)construir a nossa consciência histórica a todo o momento com o
objetivo de lapidá-la – de engrandecê-la e enriquecê-la.
Pode ser que
tanto as críticas e as impressões como os olhares aguçados pareçam,
surperficialmente, sintomas de uma parcialidade indesejada e imprópria. Mas
não. As considerações presentes no primeiro e no segundo momento têm como
alicerce, a meu ver, a formação universitária. Não está em questão aqui ser
português, branco, brasileiro, africano, imigrante e negro. Usar tais adjetivos
para fortalecer uma falsa ideia de parcialidade iria de encontro com a
principal proposta da ação de formação, acredito. Iria de encontro com primeiro
passo proposto e dado na ação de formação: a leitura da nota de abertura. Vale
a pena destacar:
“(…) através dos percursos individuais,
podemos conhecer com maior rigor as experiências colectivas.”
Talvez esses adjetivos somados a uma formação universitária – tão
importante como indiferente para alcançar a criticidade – sejam os responsáveis
por esse posicionamento não-“revoltado sem causa” e não-“panfletário”. Talvez,
ou não. O que importa é agregar e humanizar: é disto que a História precisa
para libertar as Histórias. É isso que o Ensino da História precisa para gerar
sentidos aos alunos, pois sem sentido o ensino não existe.
Sugiro a
continuidade dessa ação de formação – em outro formato; com outro repertório e
outros sujeitos. Acho que seria, igualmente e/ou mais, interessante e rico para
os professores participantes. O desconforto pode ser educativo; pode formar com
tanto primor como o conforto. Caso haja interesse, estou à disposição para
pensar outra possível ação de formação. Sou grato pela participação, satisfeito
com a ação e bem acolhido pela associação. Obrigado.
BIBLIOGRAFIA
BIBLIOGRAFIA
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