Ser aluno ontem: olhar
de aluno
Farei uso da minha vivência para fazer essa comparação entre o aluno de ontem e o aluno de hoje. Desse modo, retratarei o universo do colégio particular - um privilégio, sem dúvida, decorrente da condição de classe (média) familiar - desde o final da década de 80 ao final do século.
Os primeiros anos do colégio não apresentaram grandes dificuldades. Nos
seguintes: casa, colégio, curso de inglês e natação – depois voleibol, atletismo, dança, computação, jornal interno e pastoral da juventude. Esses
outros privilégios serviam tanto para diversificar a formação como para ocupar
o cotidiano. A vida em prédio (é)ra um tanto limitada e sem muita convivência
entre os moradores. Telefone era algo muito caro. Celular e computador,
inimagináveis – ainda na década de 90.
Era na biblioteca que estavam as fontes para os trabalhos escolares. Era o
colégio que concentrava todas as atenções: grande, com diversas atividades
extraclasses e dezenas de amigos e colegas. Pesquisar, ler. Copiar, escrever.
Sempre foi um lugar bem quisto pela maioria dos alunos. Gostava-se de ir. Era
algo saudável – como a alimentação dentro dele e em casa (menos industrializada).
Tudo tranquilo até o Ensino Fundamental II (antigo Ginásio): várias disciplinas, lições e professores.
A adaptação era mais fácil para os mais dedicados e disciplinados – leia-se: muitas vezes, os ainda
mais privilegiados. Na transição para o Ensino Médio e ao longo de todo ele, as
dificuldades acentuavam-se.
Estávamos ali para aprender. Era importante ser “inteligente”, organizado e
participativo. Era “feio” ficar para trás. Não existia uma preocupação com a
formação para o mercado de trabalho. Em outras palavras, não estava explícito
que todas as fichas estavam sendo apostadas em você. A grande preocupação era
aproveitar as oportunidades para ser mais.
O respeito ao professor existia. Atrapalhava-se a aula sem desrespeitá-lo,
diretamente. "Coisas de adolescentes", digamos: a necessidade de chamar a
atenção, chamar para si o foco, tornar-se liderança. Nada que a hierarquia escolar
não combatesse e corrigisse.
Lembro-me de uma dinâmica de recuperação onde os alunos com as melhores
notas tornavam-se monitores para auxiliar a aprendizagem dos alunos em recuperação.
Essa solidariedade caminhava na direção inversa à competição. Além disso, a
participação em práticas artísticas como condição para práticas esportivas
acabava por complementar a formação de todos, inevitavelmente. Artes, ciências
e esportes: deveria ser uma tríade acessível a todos.
Ao final do Ensino Médio, havia a tensão de ter de deixar aquela redoma tão
equilibrada e harmoniosa para enfrentar o vestibular e caminhar sozinho. Neste
momento, nos últimos anos e meses, muitos mergulhavam em livros e nos estudos,
como eu, na tentativa de não ser um futuro matriculado em cursinhos com centenas
de desconhecidos. A tensão, às vezes, faz bem. A sorte muitas vezes é
imprescindível.
Ser aluno hoje: olhar de
professor
Farei uso da minha minha experiência docente em colégios particulares (Recife/PE e São Paulo/SP) para contrapor minha vivência escolar. Tive algumas breves experiências em escolas públicas e destaco, desde já, uma observação indispensável - a partir de relatos e pesquisas: existem colégios particulares ruins e escolas públicas ótimas não só nos dois estados, mas por todo o Brasil. Antes, usava-se a escola pública para assustar os alunos dos colégios particulares e acreditava-se que pagar garantiria a qualidade do ensino. Hoje, a mercantilização da educação faz a qualidade não ser a prioridade.
Os primeiros anos do colégio não apresentam grandes dificuldades e as atividades extraclasse permanecem como estratégia para diversificar a formação e ocupar o cotidiano - para os interessados e mais privilegiados. Entretanto, o interesse por elas diminuiu - tanto pelos pais como pelos alunos. A ocupação do tempo com recursos domésticos - celular, computador, ipad, tablet, canais de televisão privados, entre outros - parece mais cômodo e seguro para ambos. São os companheiros, quase inseparáveis, durante a infância e a adolescência.
Na rede virtual encontra-se de tudo. A escola parece um ambiente sem sentido onde obrigatoriedades e responsabilidades são indesejáveis. Biblioteca é um local estranho para a maioria assim como escrever parece um fardo. O sedentarismo alimenta o corpo e a mente com informações efêmeras, fúteis e superficiais. Interagir desestabiliza e desestabilizar não faz parte das vontades. Ir ao colégio soa como um sacrifício para muitos e uma das únicas oportunidades de convivência.
Os primeiros passos no Ensino Fundamental II exige atenção e dedicação, como antes. É o momento de aprofundar o ensino das ciências. Contudo, os alunos são vistos como incapazes e imaturos - quando não conseguem se adaptar bem. Estica-se a infância como justificativa. É como se exigisse demais de uma criança e cabe aos professores suavizar - e muita vezes mascarar - o(s) problema(s).
A maioria está ali para aprender algo que parece não ter funcionalidade e importância. Troca-se o ser "inteligente", organizado e participativo pelo massivo e popular. O desejo de ser como todo mundo é latente. É um paradoxo: alunos acham que não precisam dos ensinamentos metódicos para viver enquanto os pais investem no seus futuros. A grande preocupação é concluir os estudos para aproveitar as oportunidades futuras - e não aproveitá-las para ser mais.
O respeito ao professor deixou de ser uma prioridade. Atrapalha-se a aula para desrespeitá-lo: para deixar explícito que tudo aquilo é insignificante. A família, consumidora, e a coordenação, gestora, diminuem o protagonismo docente. Antes, puberdade e adolescência manifestavam-se em momentos diferentes: a primeira era silenciosa (pré-adolescência) e a segunda, barulhenta. Hoje, a adolescência parece começar na puberdade. Desse modo, estica-se a infância e adianta-se a adolescência: a transição é ignorada, incompreendida e invisibilizada pela família - mas não pelos professores. Saber deixa de ser visto como poder.
É como "ser homem" e "ser mulher" fosse mais importante do que estar em formação - por ser mais fácil, talvez. A valorização do corpo, o estímulo às práticas sexuais e o uso de drogas lícitas e ilícitas, por exemplo, tornaram-se alternativas para os alunos tentarem se estabelecer no mesmo patamar do professor. Não importa quem sabe mais dos conteúdos específicos. O que parece importar é navegar de acordo com as ondas existentes fora do colégio: o prazer tem de ser saciado agora, o futuro profissional pode esperar. "O que você quer ser quando crescer?" não funciona mais. Há uma dificuldade imensa de planejar e preparar-se: tudo a longo prazo parece inalcançável.
Com isso, nem todos seguem para os estudos universitários - de imediato. Quando optam, preferem as faculdades privadas - porque as públicas são mais "difíceis" de entrar e concluir - e a lógica semelhante às dos seus colégios. A tensão de ter de deixar aquela redoma tão equilibrada e harmoniosa para enfrentar o vestibular e caminhar sozinho é menor do que no passado. Alguns mergulham nos estudos, outros preferem "aproveitar a vida" - e os seus privilégios. Para as aprovações, dá-se um jeito: a tensão continua, a sorte continua imprescindível e a rede de contatos um atalho.
Breves considerações
Como dito, é uma comparação livre da minha vivência como aluno e da minha experiência como professor. Olhares. Atentos olhares. Impossível generalizar. Mas é preciso deixar claro que a diversidade de instituições públicas e privadas é tamanha. Muito mais difícil avaliar e selecionar as de melhor qualidade do que antes.
Quanto às formações, acredito que uma menor convivência social gera menos contato com o mundo. Consequentemente, menos tato com a realidade e menos sensibilidade. Menos criticidade e humanidade. É como se o crescimento fosse vivenciado dentro de uma bolha que explode na adolescência. O caos da explosão acontece em paralelo ao caos do tempo presente. Os pais, mais ausentes em virtude de suas e outras necessidades, parecem não conseguir administrar as explosões.
Compensar a ausência com consumos é a grande cilada do milênio. Além de ser prejudicial para a saúde - a relação fast food e obesidade infantil torna-se cada vez mais um problema global -, é prejudicial para a sociedade: egocentrismo, dependência, ignorância (cultural e política), intolerância e violência. A autonomia, tão precisa para uma caminhada segura e uma integridade coletiva, torna-se cada vez mais idílica e negligenciada. É preciso curiosidade e humildade para ser um "bom" aluno. É preciso saber qual é papel da escola e suas limitações. Caso contrário, perdem-se os sentidos.
Breves considerações
Como dito, é uma comparação livre da minha vivência como aluno e da minha experiência como professor. Olhares. Atentos olhares. Impossível generalizar. Mas é preciso deixar claro que a diversidade de instituições públicas e privadas é tamanha. Muito mais difícil avaliar e selecionar as de melhor qualidade do que antes.
Quanto às formações, acredito que uma menor convivência social gera menos contato com o mundo. Consequentemente, menos tato com a realidade e menos sensibilidade. Menos criticidade e humanidade. É como se o crescimento fosse vivenciado dentro de uma bolha que explode na adolescência. O caos da explosão acontece em paralelo ao caos do tempo presente. Os pais, mais ausentes em virtude de suas e outras necessidades, parecem não conseguir administrar as explosões.
Compensar a ausência com consumos é a grande cilada do milênio. Além de ser prejudicial para a saúde - a relação fast food e obesidade infantil torna-se cada vez mais um problema global -, é prejudicial para a sociedade: egocentrismo, dependência, ignorância (cultural e política), intolerância e violência. A autonomia, tão precisa para uma caminhada segura e uma integridade coletiva, torna-se cada vez mais idílica e negligenciada. É preciso curiosidade e humildade para ser um "bom" aluno. É preciso saber qual é papel da escola e suas limitações. Caso contrário, perdem-se os sentidos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário