Da sala de aula para o restaurante

A fuga da sala de aula (e do país)


Desde a onda de protestos de 2013 à tensa corrida eleitoral de 2014 tornou-se perceptível que os próximos capítulos da novela brasileira não seriam bons. Isso porque tornou-se, progressivamente, difícil dialogar com adultos e jovens, amigos e familiares, alunos e professores, na medida em que a luta contra o aumento de passagem do transporte público, os impactos e os investimentos da Copa do Mundo e a corrupção crônica transformaram-se, com o desserviço e a manipulação da mídia, no conflito de baixo nível entre verde-e-amarelo e vermelho. Nada de pensar e pesquisar. Nada de refletir sobre causas e consequências. Nada de se preocupar com a maioria e com o coletivo. O que passou a importar, como em um jogo de futebol, foi torcer para o time ganhar. E no futebol há muito juiz ladrão. Torcer, xingar e nada mais.



Como sempre articulei os conteúdos de História e Sociologia ao tempo presente e estimulava discussões sobre a realidade nua, crua e cruel, comecei a ser rotulado durante os respectivos anos como "comunista", "socialista", "petista", "petralha", "dilmista", "lulista" e por aí vai - dentro e fora do espaço educacional (paulistano e privado, classe média bem média). Deixei de ser um professor bacana e tornei-me um professor chato para a maioria em meses. Adjetivos por demais caros, pesados e sem fundamento tanto para um historiador como para um sociólogo. O que fazer? Aproveitei umas passagens baratas para conhecer o Mediterrâneo (Itália, Grécia, Espanha e Portugal) nas férias de julho e fui respirar. Atenção: muito mais uma formação continuada do que um passeio-ostentação. Professor que é professor não deixa de aprender e não para de estudar. Respirei e voltei pro sufoco!


De volta ao trabalho, tive a certeza de que não dava mais para desenvolver o meu trabalho. Cobrança e mais cobrança para eu fazer o "feijão com arroz" em sala de aula e evitar a fadiga com alunos, pais, prazos e professores. Acostumado a oferecer entradas e sobremesas, decidi não me limitar, largar tudo, pegar as moedinhas e me aventurar em outro mar. Não concebia trair-me e deixar de acreditar no que defendo. Então, eu, que nunca pensei em sair do Recife, morar em São Paulo por nove anos e deixar o país, não conseguia enxergar uma alternativa melhor e mais oportuna. Era preciso - e foi bastante difícil - só desapegar da minha rotina que tanto me satisfazia, largar a cruz da docência e uma carreira profissional e sair da famosa "zona de conforto". Dito e feito. Enquanto se desenrolava o terceiro turno das eleições no início de 2015 e organizava-se, de fato, o golpe político por vias legais, eu aterrizava na Península Ibérica.


 

Aprendizados, exploração e qualidade de vida

Poderia ter me organizado melhor (investir em algo, fazer Doutorado, vender minha arte e/ou lecionar) para não começar do zero? Poderia, mas a ideia não era essa. Era preciso ser rápido e mudar tudo. E como os imigrantes, na maioria das vezes, começam por baixo, foi preciso por baixo começar. Fazer o mesmo caminho, às vezes, é muito importante. Tirei da mala humildade, respeito e vontade de aprender, deixei meus diplomas dentro de uma pasta e mergulhei dentro do restaurante. Como não sabia fazer nada tive de aprender a fazer tudo: de limpar e montar a mesa a servir e fechar conta; de lavar louça à mis en place; de cozinhar a atender sempre sorrindo sem perder o controle. Parece simples, mas não é e não foi. Como todo o ofício, esse igualmente tem muitos detalhes, normas e regras - assim como muitas manias, vícios e problemas. O cansaço mental da docência deu lugar ao cansaço físico. É (quase) um outro mundo.

Passei a conviver com muitos jovens, a arranhar o inglês que não suporto e exercitar o francês que admiro, a voltar para casa de madrugada todos os dias, a receber gorjeta e a ter uma folga por semana. Obviamente, ganha-se pouco como o professor. Alimentar é um serviço desvalorizado, seja um prato de saber ou de comida, há um bom tempo e a exploração é avassaladora. Não se pode errar e não se pode fazer o que não se pode fazer. A ordem é obedecer tenha ou não tenha um contrato de trabalho - e inexistindo assédio moral e dezenas de direitos trabalhistas. O mais obediente é o mais querido, o mais profissional. O discurso usado de cima para baixo é sempre o mesmo. Frio. Muitas vezes grosseiro e humilhante. Acima de tudo prático como em um engenho de açúcar - quando há diferenças de culturas e nacionalidades o jogo fica ainda mais apimentado e a História faz-se nítida sobre a mesa. Repete-se a máxima capitalista: todos são substituíveis.


Ao longo dessa aventura, nunca escondi meu passado profissional e sempre achei interessante as duas posturas ao descobrirem: a admiração e o desprezo. Assim como é muito bom quando lhe respeitam por isso e ponto final, é assustador quando quererem lhe destruir exatamente por isso. Enquanto uns se aproximam para trocar saberes, outros sentem necessidade de (tentar) "colocar você no seu lugar (atual)". Nunca pensei que ser professor fosse causar tanta inveja, raiva e ódio em uns. Estar sempre a ler, a questionar, a estimular conversas para além do riso frouxo e do tema pobre do momento é irritante para muitos. Poderia ter evitado muitas situações omitindo essa informação, mas elas, como todas, ensinam e educam. Como sempre destaco: continuo sendo professor só que agora fora da sala de aula e dos muros do colégio porque quem se torna não deixa de ser. Não se deixa de pensar depois que se aprende.

Confesso que o mais surpreendente foi deparar-me com a inconsequência da ostentação desumana de consumir por consumir  - e de destratar quem está do outro lado. Estraga-se muita comida, produz-se muito lixo. E o mais engraçado é que o público não é pobre e desescolarizado. Essa contradição é o que mais me cega ao tentar imaginar saídas para esse caos milenar. Enquanto muitos morrem de fome pelo mundo, pratos e mais pratos de comida são jogados fora simplesmente porque não se quis mais. A lógica do "estou pagando, é meu, não quero mais e pode jogar fora" é absurda. O lixo não fica para trás: é muito papel e muito plástico pela mesa, pela calçada e pela esplanada seguindo para algum lugar. Ninguém se importa em saber para onde vai e se vai, realmente, dividido para ser tratado. Ninguém está nem aí. Confesso que me dá mais dignidade limpar a sujeira dos outros. Muito mais. Não me envergonho em nenhum momento.


O mais triste da vida de imigrante, suponho, além da saudade da terra e dos seus, é as impressões que se formam - principalmente pelos meios virtuais. Parece que você enriquece e todos somem - por pensar que está tudo bem pelo simples fato de se estar fora do país. Uma fotografia é capaz de gerar uma série de conclusões equivocadas. Tudo ilusão: o dinheiro e as relações. São poucos os que ficam e acompanham a caminhada de perto. Entretanto, é impossível desprezar que, mesmo sob a exploração cotidiana e os dilemas estrangeiros, viver longe é a melhor opção porque a sobrevivência "tranquila" é mais acessível (moradia, alimentação e transporte; biblioteca, eventos gratuitos e parques) e onde se estava está cada vez pior. O mais triste da vida de imigrante, em outras palavras, é concluir que a repercussão do espetáculo teatral "Lava Jato" levou o país ao abismo; é perceber que ainda não é hora de voltar. A possibilidade de cuidar mais de si mesmo perdido e longe de casa agrada: é hora de controlar o refluxo gástrico adquirido pela rotina docente e o pânico causado pela estabilidade pós-trinta.

Eu sinto muita saudade da sala de aula, mas tirar o avental e deixar todo o trabalho no lugar dele não tem preço. Sem provas, sem planos de aula, sem reuniões com pais, sem preocupações técnicas inúteis, sem correções e fechamentos de notas. Enquanto essa maneira de sustentar-me por completo serve também como um exercício sócio-antropológico que me estimula a pensar o mundo está tudo ótimo. Nunca li tanto como depois que sai do país: livros técnicos e literatura. Nunca pensei que desejaria retomar aos estudos científicos depois da minha decepção com a vida acadêmica uspiana. Nunca imaginei que mergulhar sobre a África lusófona fosse me fazer tão bem. Nunca tive tantas questões para repensar e tantas ideias para destruir e re-significar. O deslocamento desloca, mas não derruba.

Vivendo em Lisboa: pretos, tugas e zucas

O mais intrigante é acordar e dormir na ex-metrópole. É ler a História nos livros, nas ruas e nos contatos com as pessoas todos os dias. É constatar a exaltação de um império ultramarino falido e frustrado. É satisfazer-se por andar pela Europa e apreciar uma proximidade muito maior com a(s) África(s) e com centenas de turistas de vários cantos do mundo. É sentir-se em casa com as familiaridades existentes na linguagem e na musicalidade, na culinária e na poesia, na paisagem e no passado; é andar pela cidade como se ela fosse sua. É estudar a História de Portugal e buscar compreender melhor a cultura e a postura dos portugueses. É sentir que a perda das colônia africanas e a ilusão do 25 de abril não foram bem digeridos ainda. É desbravar o centro histórico e turístico sem deixar de conhecer e buscar diálogos com a periferia. É lançar um olhar sociológico para entender a jogatina secular dos portugueses com os pretos e com todos os outros imigrantes - e da União Europeia e do mundo todo com Portugal. É combater o preconceito racial e a xenofobia, o machismo e a violência contra a mulher, a intolerância cultural e religiosa e a diversidade sexual em um país e um continente que se julgam civilizados. É verificar e desconstruir a imagem que se tem do Brasil e dos brasileiros. É se deparar com brasileiros tão desinformados e perdidos como os meus antigos alunos de onze anos fazendo ecoar a torcida por um desmanche de projeto nacional depois que a presidenta eleita foi tirada do seu cargo legítimo. É saber que quem mais pode lhe ajudar e/ou prejudicar nasceu no mesmo país. É estar do outro lado do oceano sem tirar os pés e os olhos do meu país e, principalmente, das cidades que me viram crescer: Recife e São Paulo. É continuar aprendendo e ensinando.

Vale a pena destacar que há um período de euforia nesta mudança de vida, seguido por outro menos acelerado e mais depressivo. Desenraizar e enraizar leva tempo. Para uns curto, para outros demorado. As relações humanas ajudam bastante, mas não basta - porque os grandes amigos depois dos trinta já foram feitos e estão, querendo ou não, longe. Tive a sorte de encontrar uma amiga do tempo do colégio e outra do tempo da faculdade. É fundamental você se reconhecer no conhecimento do outro sobre você para você não se perder; é fundamental alimentar as amizades gratuitas e desinteressadas. Sou muito grato a todos pela acolhida e agradeço demais a companhia dos colegas de trabalho que se tornaram uma família voluntária - seja da mesma terra, seja de solo lusitano, seja de uma ilha cabo-verdiana, seja lá de Angola ou Moçambique ou até do Paquistão. Sem os laços humanos nada se amarra!

O que fazer com tudo isso?

Amadurecer, pessoal e profissionalmente. Não deixar de olhar com criticidade para tudo o que acontece ao seu redor. Seja aqui, seja acolá, seja do outro lado, embaixo e/ou em cima. É não parar de acompanhar o giro do mundo. É dançar com ele. É pensar, revoltar-se e se posicionar.

Que todo o imigrante brasileiro e todos os outros acompanhem e participem, conscientemente, do que acontece no seu país. É muita gente na mão de um governo golpista. É uma política de venda nacional pra lá de desnecessária. É um genocídio o que está se planejando para a Educação e a Saúde do Brasil. Leia mais, provoque-se, mexa-se, faça alguma coisa. Eu continuarei fazendo a minha parte e nunca deixarei de ser um profissional da Educação.

Fico por aqui, agradeço a leitura e discorrerei sobre alguns pontos em outras Notas do (auto)exílio. Fora Temer! Fora Mendonça!


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* As treze primeiras imagens são xilogravuras da série "Idade Classe Média" de Kiko Dinucci.
** Minha primeira escola foi no Restaurante do Carmo, no largo mais que histórico-poético.
*** Ali, meu parceiro (muçulmano) do trabalho atual: professor de kebab, massa, molho e pizza.

3 comentários:

  1. Perfeitente professor, te admiro muito e desejo sempre tudo de maravilhoso... Fora Temer! Fora Mendonça! Não iremos desistir do nosso Brasil.... Amo-te

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  2. Carol Lopes Wanderley16 de outubro de 2016 às 19:40

    adorei o texto!!! me identifiquei por completo ... a experiência do trabalho no cruzeiro também é um muito de tudo que você falou (e do que você omitiu kkkk)mas extremamente gratificante de estar viva e consciente do estar no mundo. Quero mais conversas nossas, quero mais poesias no dia-a-dia ;) , e espero ver mais textos enriquecedores como este. xero.

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  3. Ótimo texto.... participei um pouco dessa sua história, partilhamos bons e maus momentos e assim si segue a vida!!!

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