Aconteceu mais um Congresso Anual da Associação
dos Professores de História de Portugal - faço do seu tema o título desta
postagem – na cidade do Porto [Portugal] entre 27 e 29 de outubro. Aproveitei a
proximidade com a APH após a ação de formação “Racismo e Cidadania”, a minha
associação e o interesse pela programação para conferir o seu conteúdo.
(Mas, antes de compartilhar algumas linhas e
questões sobre o evento, é importante frisar que na publicação quadrimestral
como nas chamadas para o congresso foi bem descrito o projeto O Atlântico dos Outros – promovido pelo concurso Projetos
de Investigação nos Domínios de Línguas e Cultura Portuguesa da Fundação
Calouste Gulbenkian como uma derivação do projeto Salvador da Bahia: american, european and african forging of a colonial
capital city (Bahia – 16/19) marcado pelo intercâmbio de investigadores da
Universidade Nova de Lisboa e da Universidade Federal da Bahia. Uma citação
breve sobre as críticas aos manuais escolares portugueses e os nomes de Marta
Araújo e Sílvia Maeso também aparecem no material em circulação prévia ao
evento. Conheci os vídeos desenvolvidos pelo projeto na ação de formação
“Racismo e Cidadania”, já conhecia os estudos das investigadoras e acompanho, com
atenção mas um tanto de longe, a luta antirracista em Portugal e alguns
encontros do movimento negro. Impossível não querer conferir o evento para
conhecer melhor o campo da História, dos professores de História e do seu
diálogo com outros campos.)
Como meu interesse estava centrado no segundo e
terceiro dia, não conferi as atividades do primeiro – também por não conhecer a
cidade e desejar apreciá-la, investigá-la e observá-la. O segundo dia começou
com trechos dos recursos didáticos audiovisuais desenvolvidos pelo projeto O Atlântico dos Outros, suas explicações
e justificativas. Na sequência, uma mesa redonda sobre currículo, manuais
escolares e práticas pedagógicas [Cristina Maia (FLUP), Mariana Lagarto (E.
Secundário) e Raquel Pereira Henriques (FCSH)] antes da apresentação do
trabalho jornalístico e sociológico Racismo
em português da Joana Gorjão Henriques. E, para encerrar o dia, outra mesa
redonda bem diversificada sobre as representações do cigano da literatura
juvenil portuguesa [Maria da Conceição – Viseu], a figura do herói nas
narrativas construídas pelos alunos [Isabel Barca (U. Minho) e Olga Magalhães
(U. Évora)]; a invisibilidade dos homens comuns nas narrativas da expansão
portuguesa [Amélia Polónia (FLUP)] e os arquivos disponibilizados pelo projeto
Ensina da RTP. Resumirei as exposições com algumas reflexões:
1. Os frutos audiovisuais do projeto O Atlânticos dos Outros são válidos, definitivamente. Os critérios usados para a sua produção são legítimos. Entretanto, como compartilhado com um dos participantes por e-mail após a ação de formação Racismo e Cidadania e antes das finalizações, o material é ilustrativo. Ilustra-se o conteúdo dos manuais escolares portugueses. Não apresenta reflexões sobre as consequências da escravidão e sua relação com o tempo presente. Não enfraquece a tríade África-escravidão-negro. Não constata que, mesmo com o passar dos séculos, as posições sociais de brancos e negros em Portugal, por exemplo, são semelhantes. Não destaca o uso abusivo português das ex-colônias e do trabalho excessivo. Não humaniza e sensibiliza, apenas ilustra. A ausência de intelectuais negros reforça tal ilustração acadêmica e branca. Representatividade e visibilidade ainda são, aparentemente, tópicos de difícil aceitação e compreensão. Não existe nenhuma ponte com a luta antirracista crescente e a atuação dos movimentos sociais. É como se o material surgisse como uma referência para abordar a temática e responder as críticas aos manuais escolares, mas com significantes limitações.
2. A discussão sobre manuais-programas-práticas mostra-se bastante familiar ao universo docente: currículo para desdobrar, extensão e quantidade de conteúdos, tempo para abordagens, avaliações e burocracias, cobrança da família. Dois pontos chamaram a atenção: a importância do mercado editorial e a criatividade como recurso da salvação educacional. Acabar com o livro impresso e dialogar com as novas tecnologias? Desenvolver plataformas digitais? Ampliar e aprofundar ou reduzir e sintetizar? Como selecionar? O problema do ensino da História não é o livro. Está nele como nas explanações em sala e nas atividades realizadas. Mais além: nas produções acadêmicas, na formação de professores, nos discursos institucionais, na propaganda turística e nas relações interpessoais. Criatividade docente é fundamental, mas não é inata. É preciso ensinar e aprender a ser criativo em sala de aula. É preciso saber quais os caminhos existem para cada temática. É preciso começar pelo livro e não tê-lo como fim. É preciso conhecer o que não está escrito.
3. Ficou nítido que Joana Gorjão Henriques estava a representar o outro lado da História com o seu Racismo em português. Sua apresentação foi tão clara e direta como a escassez de intervenções e o silêncio. Pesquisar mais de cem pessoas e conversar sobre o racismo sofrido é algo quase inquestionável. Ao observar a posição firme e fundamentada de uma jornalista com formação sociológica, fiquei a pensar na importância social dos profissionais de outras áreas para questionar a escrita da História em Portugal. É como se fora da História as pessoas estivessem mais atentas do que dentro dela. Será conveniente? Para quem? Para o financiamento de investigações, para a comercialização de publicações, para atender aos interesses estatais e mercantis e para fortalecer um passado heroico contrário à realidade? Para manter a ordem social? Uma só presença, mas presente.
4. Não consegui conferir a explanação sobre a representação dos ciganos na literatura, mas ficou nítido um silêncio semelhante ao da explanação de Joana Gorjão Henriques. É como se desse o espaço de fala para ficar claro que se deu o lugar de fala. Trata-se de um projeto desenvolvido por uma professora-bibliotecária bastante lúcido e de combate à ciganofobia. Conheço poucos escritos da Isabel Barca e tenho uma certa admiração pela metodologia dos seus estudos. Entretanto, antes de conhecê-la na mesa, ela estava ao meu lado e fez uma intervenção para lá de assustadora: “O Cristianismo combateu a escravidão”. Sua apresentação, em parceria com a Olga Magalhães, foi sobre produções de textos realizadas por alunos do 9º Ano sobre os heróis da História de Portugal. O filtro é fundamental e interessante para sabermos o que fica antes do Ensino Secundário. Contudo, na explanação, a liberdade dada aos alunos para valorar os heróis é intrigante. A diversidade de impressões parece ser interessante mesmo que reforce a apologia de um ditador como Salazar, por exemplo. Será mesmo que a diversidade enriquece? Ou será que complica a compreensão histórica? Deixar o aluno julgar os heróis sem mediação crítica é válido? Quando questionada sobre o protagonismo da formação dessas impressões sobre os heróis – “a História é contada como aprendida?” -, a professora recorre às diferentes vozes existentes (a família, a escola, a igreja, a mídia) e diminui o protagonismo dos professores e da escola, convenientemente. Já a professora Amélia Polónia, que se dedica a falar sobre os homens comuns, ressalta demais a cooperação e a negociação - e não dominação e exploração - existente entre esses e os não-comuns, seus superiores. Usando um vocabulário que se oscila entre “expansão ultramarina portuguesa” e “presença portuguesa no mundo” – de acordo com a mesma, “mais soft” -, ela elenca um slide com cinco contributos e nada desfavorável. Aproveita para salientar a necessidade de uma análise em rede para investigar melhor esses homens comuns. Quem faria parte dessa rede de análise? Professores académicos que exaltam um passado histórico, grandes homens e feitos heroicos? No mínimo, uma relação incoerente e questionável. Por fim, encerra-se o último momento com a apresentação do projeto Ensina da RTP com um arquivo considerável de temas históricos, pensados e/ou sugeridos. Vale a pena conferir!
Do Maneirismo à Arte Nova: percurso pelos marcos da arquitetura da Misericórdia do Porto
A visita de estudo, por não conhecer a cidade e sua história, foi aprofundada e interessante. Começou dentro da instituição e sobre a sua construção. A estrutura era bem mais simples no período de sua formação (1499) e atendia à população: assistência aos cárceres e sepultamento dos enforcados; apresentações teatrais e lutarias (para a fundação do Hospital Santo António). Além do tradicional assistencialismo aos mais pobres. Os dois reis destacados pela Misericórdia são: D. Manuel I, responsável pela urbanização dos arredores, e D. Pedro IV (D. Pedro I para os brasileiros), um dos seus provedores. Em uma das salas contém duas obras conectadas: Fons vitae, a obra flamenca que traduz a ligação da cidade com o norte da Europa atribuída a Colijn de Coter, e a escultura O meu sangue é o vosso sangue, de Rui Chafes – que começa no interior da sala e acaba na parte externa da Misericórdia, na rua das flores. Segue-se a sala dos despachos e uma galeria com os retratos pintados dos benfeitores, homens e mulheres – onde os de corpo inteiro representavam, de costume, os mais ilustres. Algumas salas foram ignoradas antes de seguirmos para a capela e de conhecer a importância artística do italiano Nicolau Nasoni, tanto para a cidade como para a fachada da igreja.
1. Os frutos audiovisuais do projeto O Atlânticos dos Outros são válidos, definitivamente. Os critérios usados para a sua produção são legítimos. Entretanto, como compartilhado com um dos participantes por e-mail após a ação de formação Racismo e Cidadania e antes das finalizações, o material é ilustrativo. Ilustra-se o conteúdo dos manuais escolares portugueses. Não apresenta reflexões sobre as consequências da escravidão e sua relação com o tempo presente. Não enfraquece a tríade África-escravidão-negro. Não constata que, mesmo com o passar dos séculos, as posições sociais de brancos e negros em Portugal, por exemplo, são semelhantes. Não destaca o uso abusivo português das ex-colônias e do trabalho excessivo. Não humaniza e sensibiliza, apenas ilustra. A ausência de intelectuais negros reforça tal ilustração acadêmica e branca. Representatividade e visibilidade ainda são, aparentemente, tópicos de difícil aceitação e compreensão. Não existe nenhuma ponte com a luta antirracista crescente e a atuação dos movimentos sociais. É como se o material surgisse como uma referência para abordar a temática e responder as críticas aos manuais escolares, mas com significantes limitações.
2. A discussão sobre manuais-programas-práticas mostra-se bastante familiar ao universo docente: currículo para desdobrar, extensão e quantidade de conteúdos, tempo para abordagens, avaliações e burocracias, cobrança da família. Dois pontos chamaram a atenção: a importância do mercado editorial e a criatividade como recurso da salvação educacional. Acabar com o livro impresso e dialogar com as novas tecnologias? Desenvolver plataformas digitais? Ampliar e aprofundar ou reduzir e sintetizar? Como selecionar? O problema do ensino da História não é o livro. Está nele como nas explanações em sala e nas atividades realizadas. Mais além: nas produções acadêmicas, na formação de professores, nos discursos institucionais, na propaganda turística e nas relações interpessoais. Criatividade docente é fundamental, mas não é inata. É preciso ensinar e aprender a ser criativo em sala de aula. É preciso saber quais os caminhos existem para cada temática. É preciso começar pelo livro e não tê-lo como fim. É preciso conhecer o que não está escrito.
3. Ficou nítido que Joana Gorjão Henriques estava a representar o outro lado da História com o seu Racismo em português. Sua apresentação foi tão clara e direta como a escassez de intervenções e o silêncio. Pesquisar mais de cem pessoas e conversar sobre o racismo sofrido é algo quase inquestionável. Ao observar a posição firme e fundamentada de uma jornalista com formação sociológica, fiquei a pensar na importância social dos profissionais de outras áreas para questionar a escrita da História em Portugal. É como se fora da História as pessoas estivessem mais atentas do que dentro dela. Será conveniente? Para quem? Para o financiamento de investigações, para a comercialização de publicações, para atender aos interesses estatais e mercantis e para fortalecer um passado heroico contrário à realidade? Para manter a ordem social? Uma só presença, mas presente.
4. Não consegui conferir a explanação sobre a representação dos ciganos na literatura, mas ficou nítido um silêncio semelhante ao da explanação de Joana Gorjão Henriques. É como se desse o espaço de fala para ficar claro que se deu o lugar de fala. Trata-se de um projeto desenvolvido por uma professora-bibliotecária bastante lúcido e de combate à ciganofobia. Conheço poucos escritos da Isabel Barca e tenho uma certa admiração pela metodologia dos seus estudos. Entretanto, antes de conhecê-la na mesa, ela estava ao meu lado e fez uma intervenção para lá de assustadora: “O Cristianismo combateu a escravidão”. Sua apresentação, em parceria com a Olga Magalhães, foi sobre produções de textos realizadas por alunos do 9º Ano sobre os heróis da História de Portugal. O filtro é fundamental e interessante para sabermos o que fica antes do Ensino Secundário. Contudo, na explanação, a liberdade dada aos alunos para valorar os heróis é intrigante. A diversidade de impressões parece ser interessante mesmo que reforce a apologia de um ditador como Salazar, por exemplo. Será mesmo que a diversidade enriquece? Ou será que complica a compreensão histórica? Deixar o aluno julgar os heróis sem mediação crítica é válido? Quando questionada sobre o protagonismo da formação dessas impressões sobre os heróis – “a História é contada como aprendida?” -, a professora recorre às diferentes vozes existentes (a família, a escola, a igreja, a mídia) e diminui o protagonismo dos professores e da escola, convenientemente. Já a professora Amélia Polónia, que se dedica a falar sobre os homens comuns, ressalta demais a cooperação e a negociação - e não dominação e exploração - existente entre esses e os não-comuns, seus superiores. Usando um vocabulário que se oscila entre “expansão ultramarina portuguesa” e “presença portuguesa no mundo” – de acordo com a mesma, “mais soft” -, ela elenca um slide com cinco contributos e nada desfavorável. Aproveita para salientar a necessidade de uma análise em rede para investigar melhor esses homens comuns. Quem faria parte dessa rede de análise? Professores académicos que exaltam um passado histórico, grandes homens e feitos heroicos? No mínimo, uma relação incoerente e questionável. Por fim, encerra-se o último momento com a apresentação do projeto Ensina da RTP com um arquivo considerável de temas históricos, pensados e/ou sugeridos. Vale a pena conferir!
Do Maneirismo à Arte Nova: percurso pelos marcos da arquitetura da Misericórdia do Porto
A visita de estudo, por não conhecer a cidade e sua história, foi aprofundada e interessante. Começou dentro da instituição e sobre a sua construção. A estrutura era bem mais simples no período de sua formação (1499) e atendia à população: assistência aos cárceres e sepultamento dos enforcados; apresentações teatrais e lutarias (para a fundação do Hospital Santo António). Além do tradicional assistencialismo aos mais pobres. Os dois reis destacados pela Misericórdia são: D. Manuel I, responsável pela urbanização dos arredores, e D. Pedro IV (D. Pedro I para os brasileiros), um dos seus provedores. Em uma das salas contém duas obras conectadas: Fons vitae, a obra flamenca que traduz a ligação da cidade com o norte da Europa atribuída a Colijn de Coter, e a escultura O meu sangue é o vosso sangue, de Rui Chafes – que começa no interior da sala e acaba na parte externa da Misericórdia, na rua das flores. Segue-se a sala dos despachos e uma galeria com os retratos pintados dos benfeitores, homens e mulheres – onde os de corpo inteiro representavam, de costume, os mais ilustres. Algumas salas foram ignoradas antes de seguirmos para a capela e de conhecer a importância artística do italiano Nicolau Nasoni, tanto para a cidade como para a fachada da igreja.
É importante não esquecer que essa bondade cristã e solidariedade elitista serviram como excelente alternativa para um período de crise econômica, tanto no campo como na cidade. Alternativa essa capaz de evitar revoltas populares e gerar prestígio entre os mais privilegiados e ricos.
Além da visita interna, percorreu-se
a rua das flores antes de seguirmos para a Torre dos Clérigos, a antiga cadeia,
o Jardim da Cordoaria, a Academia Politécnica – hoje, Universidade do Porto -,
o Hospital Santo António – um dos maiores projetos fora de Londres realizado
por um inglês -, o Convento do Carmo – hoje, Guarda Nacional –, a Igreja das
Carmelitas e a rua da Galeria de Paris, com algumas fachadas de Arte Nova.
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Enfim, o evento permitiu
perceber melhor a relação entre os campos e constatar algumas de suas
particularidades e regras. Fica o parabéns para Marta Porto, responsável pelas formações da APH com uma atenção singular e desafiadora. Se a História está sendo mal contada nas aulas de aula? Soa conveniente. Sabe-se que sim, mas o trabalho é muito duro e todos parecem um tanto cansados, desmotivados, indispostos. Recontá-la mexe com toda a identidade nacional e, inevitavelmente, com as individuais. Eram poucos participantes: uns jovens-académicos e
muitos professores mais velhos; majoritariamente, mulheres. O problema da
mobilização, de fato, atinge não só esses eventos educacionais como os de outros movimentos sociais. Reunir para debater é um problema que precisa ser solucionado
com urgência porque sem o coletivo não há saída. Muito prazer em conhecê-los: Alexandre, André, Elza e Mara (FLUP). Obrigado pela companhia. Sigamos!