Atlântico Vermelho

Eu tive a sorte de presenciar a abertura desta exposição no Padrão dos Descrobimentos - integrando a programação da Lisboa: Capital Ibero-americanaca da Cultura (muito mais profunda do que a anterior Racismo e Cidadania) e me deparar com uma paulistana negra de imensa criatividade e criticidade, sabedoria e sutileza: Rosana Paulino. Apaixonada pela Ciência, impulsionada pela Arte e sustentada por laços familiares e étnicos, ela apresenta um trabalho APARENTEMENTE simples [depois de passear pela identidade familiar, pelas ideias de assentamento e pelo trabalho da mulher negra - das amas de leite e mucamas às babás e domésticas]: costuras e suturas, impressão em tecido de imagens "clássicas", memórias seculares, montagens unificadoras, afirmações densas e questionamentos tensos. É daquelas exposições que lhe bagunçam e fazem pensar: o eurocentrismo, a desumanização, a ganância e ignorância humana, a reprodução do passado, o equilíbrio desequilibrado, os usos e abusos, as apropriações e os extermínios. Vale a pena demais conferir!

História Natural? Classificar é saber? O Progresso das Nações?
A Permanência das Estruturas? O Amor pela Ciências? 
A Salvação das Almas? As Riquezas da Terra?

  

 















[Tornou-se inevitável não levar alguns integrantes do Projeto Recanto para apreciarem a exposição a fim de inspirar as suas produções plásticas finais!]

Pensar África


Duas mesas foram realizadas para oferecer um panorama sobre a trajetória das lutas de africanos e afrodescendentes - no Brasil e em Portugal - nos últimos anos em uma semana simbólica como a da Consciência Negra [tomando como inspiração a sua existência na agenda anual brasileira] e tendo como subtítulo: a herança do passado, o caminho presente. A primeira composta por Michel Cahen (CNRS/LAM) e Mojana Vargas (CEI/IUL) e a segunda por Joacine Moreira (CEI/IUL) e Cristina Roldão (CIES/IUL).


O historiador francês, especialista em África lusófona, discorreu sobre o mito do não-racismo na tentativa de enfraquecer a inocente e conveniente ideia de uma colonização diferenciada por parte dos portugueses sobre os territórios africanos dominados por séculos. Para isso, destaca que houve uma colonização tardia - em se tratando da conquista da composição territorial atual correspondente ao fim do século XIX e durante o XX - além de uma propaganda ditatorial fundada no lusotropicalismo, de inspiração freyriana, e estimuladora da mestiçagem como forma de portugalização - e não apenas uma civilização combinada com evangelização desprovida de exploração. Antes do XIX, contudo, essa harmonia era combatida e temida - apenas surgindo para atender ao formato e aos interesses de um republicanismo colonialista. Ao pontuar a migração de portugueses do campo para os espaços urbanos coloniais, deixa-se claro que a pobreza não anula ou diminui o racismo frente aos africanos: é o que denomina como racismo de proximidade. E, para finalizar sua explanação, enfatiza que a ideologia da assimilação estruturava-se sobre várias exigências (costumes, língua e profissão), a ideologia colonial não foi abandonada com a Revolução dos Cravos e que, no final da década de 1980, Portugal abraça a lusofonia para alimentar uma ilusão patriótica favorável à sua inserção na União Europeia.

A doutoranda em Estudos Africanos, na sequência, faz uma breve digressão sobre a História da Escravidão com a finalidade de aproximá-la aos dados brasileiros relacionados às recentes condições sociais de brancos e pardos/negros (analfabetismo, escolaridade, renda salarial, violência urbana, feminicídio, presença universitária, entre outros). Esse primeiro momento é usado para a provocação lançada em seguida: o que se sabe sobre a população negra portuguesa? Pressupõe-se que o racismo estrutural brasileiro é semelhante ao português e percebe-se um conformismo em saber pouco. Isso é notório pela ausência de alunos, docentes e publicações ligadas ao universo afrodescendente, por exemplo. A presença da temática no campo jornalístico parece insuficiente visto que a esfera pública e a própria academia, instâncias de poder/saber, mostram-se inalteráveis e inertes. Não existem dados. Não se deseja "abrir esse barril"!


A investigadora Joacine Moreira inicia sua fala sobre o poder semântico dos conceitos históricos como forma de blindar a História de Portugal (colônia, colono, colonialismo, colonização, anticolonial, descolonização, neocolonialismo, pós-colonial). Consequentemente, frisa a centralidade do colonialismo na História da África (pré-colonial, colonial e pós-colonial) e a necessidade de (re)escrever a História ressignificando - ou substituindo - seus conceitos para transformar o discurso e sua compreensão. Compartilha exemplos: guerras coloniais x lutas de libertação; descolonização x independências; "retornados" como problema do colonialismo ou da emancipação. Questiona o limite entre o racismo e a xenofobia antes de apresentar as derivações do racismo (exclusão [pobreza, paralização e dúvida], violência, invisibilidade [activismo, politização e resistência] e negação/normalização) capazes de promover alternativas para a construção de uma consciência negra. Magnificamente, conclui sua apresentação lembrando que não basta combater a mentalidade colonial, o capitalismo e o racismo sem combater o machismo: são esses quatro pilares que sustentam as relações de poder e de opressão.

Cristina Roldão, socióloga dedicada ao questionamento acerca da não-recolha de dados étnico-raciais em Portugal, inicia sua apresentação lembrando da Década dos Afrodescendentes [2015-2024] pela ONU - e a indiferença estatal -, fazendo um apelo ao projeto de um memorial às vítimas da escravatura e a conveniência de uma desmemória. A justificativa da não-recolha, de acordo com as instâncias de poder, é a inconstitucionalidade. Entretanto, diversos exemplos de documentos oficiais que fazem uso de dados proibidos, segundo a lei, são compartilhados a fim de ilustrar o paradoxo existente no tempo presente. Nota-se que há uma resistência de permitir a recolha e sua análise para evitar a inevitável elaboração de políticas públicas específicas para uma parte da população - discriminada e marginalizada. Uma atual e leve mudança no discurso estatal sobre a recolha destes dados não garante o compromisso com os passos posteriores necessários ao retrato a ser tirado nem a participação dos movimentos sociais. Em outras palavras, o que está em jogo não é apenas a recolha dos dados, mas sua análise, as problemáticas reveladas e as soluções construídas. Os dados serviriam, além disso, para a elaboração de contra-narrativas a fim de constatar a manutenção de um racismo estrutural, e não excepcional, em Portugal e desmitificar a ideia de uma portugalidade branca. E muito mais: serviria como uma forma direta e prática de potencializar a conscientização/mobilização capaz de evidenciar os problemas da desigualdade social gerados pelos processos históricos. Trocando em miúdo: teme-se a recolha de dados porque teme-se o impacto de seu retrato. Ela finaliza sua apresentação chamando a atenção para (auto)alimentação acadêmica, obstáculo quase indestrutível, e os seus múltiplos benefícios.

Congresso Paulo Freire

Com o tema "A Educação como prática de liberdade: 50 anos", conferi a explanação da professora Luiza Cortesão e participei de uma roda de conversa, dinamizada por Mabel Cavalcanti, sobre "Educação e Cidadania em Paulo Freire: um diálogo de liberdade de esperança" no congresso realizado na Escola Secundária D. Dinis (Lisboa, 17 e 18 de novembro). Não conhecia a professora emérita da Universidade do Porto. Já a poeta-educadora, minha conterrânea, tive o prazer de reencontrá-la para conferir sua fala tão fraterna, humana e sincera.

[Nas formalidades de abertura, esteve presente o representante de Cultura da embaixada brasileira, Carlos Kessel, que fez um discurso romântico sobre o intelectual em questão e sua relação com ele por meio de uma instituição escolar. Entretanto, nada foi dito sobre a visão atual, histérica e reacionária, sobre Paulo Freire no período pré-e-pós-Golpe. Como se nada estivesse acontecendo no Brasil. Ossos do ofício, dever público, silêncio temeroso.]

Luiza Cortesão atentou-se sobre dois pontos: a politicidade da Educação e o conceito freiriano de inédito viável. O primeiro passo dado foi deixar a mesa, aproximar-se do público e tentar conhecê-lo como era possível: quem é professor do Ensino Básico, do Secundário e do Superior? Na sequência, apresentou algumas questões para estimular reflexões: que não vai, não gosta e reprova/desiste da escola? Ainda para potencializar as reflexões apresentou alguns dados referentes ao anafalbetismo, ao desempenho escolar por região portuguesa, no público e no privado, de acordo com o escalão familiar e com a escolaridade da mãe, no campo e na cidade... e usou dados brasileiros para destacar a questão étnico-raciais.


Foi-se guiando um caminho pela escola para percebermos que as diferenças não são levadas em conta. A desigualdade é reflexo desta diversidade e a escola, por sua vez, ignora (diminue e/ou elimina) a diversidade reproduzindo a desigualdade. Exclue - ou melhor, expulsa. Tenta encaixar diferentes alunos no mesmo currículo; avaliar diferentes alunos com os mesmos Exames Nacionais. Castigar e medicalizar são ressaltadas como medidas mais do que desumanas e prejudiciais.  Destaca a existência de fendas, valas e abismos na relação aluno-professor-escola.

Ou seja, para fazer uso de uma pedagogia humana que abrace a diversidade é preciso enxergar o que há de político e fazer política. É inevitável, preciso e urgente. Não fazer política é fazer - ou melhor, é deixar fazer. E, para compreender a diversidade cultural, cita Boaventura, é preciso considerar a incompletude das culturas: essa é a condição que alimenta a diversidade. Como quebrar todas essas barreiras: inovar, propor o viável. É o professor que pode fazer uso dessa arma. É essa infiltração que pode promover transformação. Para reforçar seu olhar, sugere leituras: Cuidado, escola!, críticas em quadrinhos; O arco-íris na sala de aula?, de sua autoria; e Os herdeiros: a escola e a cultura, de Jean-Claude Passeron e Pierre Bourdieu - além dos conceitos de daltonismo cultural, violência simbólica e saberes escolares rentáveis, recontextualização e justiça cognitiva. 

É preciso usar a utopia para (fazer) andar; é preciso usar as raízes para (permitir) ser outra coisas. Em seguida, trocamos e-mails: solidarizou-se com o (auto)exílio e confortou-me com sua experiência na ditadura salazarista. Contato estabelecido e a ser cultivado pelo Instituto Paulo Freire [Porto]. Mais um frutífero e inesquecível encontro!


Mabel Cavalcanti, com seu coração aberto, sua fala doce e sua papo reto, antes de mergulhar na sua pesquisa sobre o Movimento Graal - de alfabetização em Portugal a partir do "método" freiriano - e a Metodologia do Cuidado [de si, do outro e do planeta], fala do seu contato com o professor no agreste pernambucano e aproxima-se de todos com uma dinâmica simples e intensa. Ao conhecer as "pessoas mais lindas desse mundo" sem as quais "não pode viver", enlaça todxs tornando dezenas em um só. Ligando vidas, discorre sobre a importância de ver vida na sala de aula. E não só ver: tocar, abraçar, acarinhar, puxar, impulsionar, soprar, voar, inspirar, provocar, trocar. Ler o outro, escrever no outro e deixar-se escrever.

Evidencia, sutilmente, que é na relação com o outro que está a cidadania porque sem o outro não há educação. Relembra Gramsci ao afirmar que todos são intelectuais (incompreendidos) e que a escola deveria ser mais um ambiente de dúvidas e não de certezas. E que a tríade povo-palavra-liberdade é tão substancial quanto a autonomia-produção-partilha: um caminho. Alguns obstáculos foram citados pelos participantes como: as implicâncias entre professores, as limitações da direção, a estrutura escolar e a resistência dos alunos. Obstáculos pequenos e pontuais frente ao legado de Paulo Freire. Porque ele é amor e revolução: é (re)construção diária. É para os que tem coração e coragem!

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Alguns participantes partilharam contatos educacionais portugueses atentos e acolhedores: Ordem dos Cidadãos, Movimento Escola Moderna e Educação para Cidadania Global.