Projeto ReCanto: fim do Primeiro Ato

O Projeto ReCanto deu seu primeiro passo na periferia lisboeta e realizou-se nas tardes de sábado entre outubro e dezembro de 2017. Participaram crianças, adolescentes, adultos; negrxs e brancas; portuguesas e brasileirxs; católico, umbadistas e evangélicas; a maioria, mulheres. O objetivo era|foi aprofundar diálogos, promover encontros e conscientizar a partir das Artes. Nem todxs participaram de todos os encontros e chegaram ao final do módulo, mas todos viveram a troca. Foi uma experiência inesquecível e rica para todos nós!


Antes de tudo, foi preciso saber o que se passava na cabeça dxs participantes sobre África - tema escolhido por diversos motivos: pelo espaço (Canto da Sereia Loja Esotérica e Casa de Oxum); pela presença negra nos arredores; pela relação do continente com o país; pela importância de conversar o que não se conversa por aí. Dos pontos de partidas, percebemos a existência de diversos pontos comuns e superficiais. De pré-conceitos.


Para aprimorá-los, mergulhamos na História - do continente e do mundo. Dos estudos arqueológicos, passando por impérios desconhecidos e silenciados nos manuais escolares, até a História (mal) contada das colonizações, da escravidão, da "mentalidade de uma época" e dos seus reflexos no século passado e nos dias de hoje. Fotografias e mapas foram fundamentais para ilustrar esse papo profundo!

 

Falar sobre o Baobá, a árvore sagrada "do esquecimento", "da memória" e|ou "da vida" de importância histórica e simbólica, foi ótimo para sensibilizar, por outra via, as cabeças e os olhares de quem pensa a África. Uma atividade bem simples deixa bem claro que essa região é muito mais do que um continente. Tudo, de cima e de longe, parece igual. Mas nada é igual. Trata-se de um "berço (pra lá de heterogêneo) da humanidade" onde cada parte se liga e nenhuma pode representar sozinha o todo. Sabido isso, surge a necessidade de mais alguns mergulhos!



Só mergulhos destruiriam essa imagem coletiva e comum da África como reduto de miséria, fome e guerra. Sem ir além, os pré-conceitos ficam e enraizam-se. São pré-conceitos divulgados há séculos pelos mais diferentes meios. São pré-conceitos convenientes para, exatamente, impedir a exaltação, o reconhecimento e a valorização da terra dos africanos, suas culturas e suas riquezas.


Foi preciso conectar-se com as Áfricas que (con)vivem conosco: por isso, ainda nos primeiros encontros, tentamos pensar quantos e quais os africanos conhecemos. Daí, uma confusão prevista e satisfatória para dialogar: quantxs negrxs eu sei que são africanxs e quantos negrxs são nascidos em Portugal e nós achamos que são africanxs? quantos eu não sei de onde vieram e onde nasceram? E, consequentemente, surge o momento de refletirmos sobre a importância de (re)conhecermos a história dxs outrxs. 


Inevitavelmente, foi impossível não falar sobre essas mudanças espaciais que tanto (de)formam e transformam. Quais as causas das migrações? Todos migram porque querem? O que se ganha e o que se perde ao migrar? E falar em migração é falar de saudade(s). Duas músicas foram selecionadas para mais um mergulho: um hino-clássico da Cesaria Évora e uma canção linda e profunda mais atual da Aline Frazão.


Depois da leitura de dezenas de poemas - reunidos mais abaixo - em um encontro dedicado aos versos, os participantes construíram um poema reunindo linhas surgidas através de duas voltas em um círculo humano. Duas voltas e um poema autoral e profundo... 


Todos os encontros contaram com uma trilha sonora africana. A dificuldade de seleção foi proporcional a imensidão da região. Optou-se por apreciar uma trilha menos popular - no duplo sentido: de tradicional e de popularidade - e mais "diferente" - para ajudar a (des/re)construir os pré-conceitos. De diferente cantos e recantos. Um encontro foi dedicado ao cinema - outra dificuldade imensa: de produção e de acesso. O escolhido foi Na cidade vazia (2004), luso-angolano dirigido por Maria João Ganga, onde foi possível mergulhar entre o interior e o urbano africano - angolano.
      
      

Depois de tantos mergulhos, aquela suposta falta de familiaridade com as artes já não servia como desculpa. Começamos a brincar com as ideias, com as palavras, com as cores e com as formas antes de conhecermos melhor alguns artistas africanos - reconhecidos, mundialmente, pela sua arte.  


A dificuldade de escolher artistas visuais africanos também se fez presente. Os escolhidos - pela linguagem artística, principalmente - foram: Gonçalo Mabunda (Moçambique), Ibrahim Mahama (Gana), Inji Efflatoun (Egito), Marlene Dumas (África do Sul), Nidhai Chamekh (Tunísia) e Yonamine (Angola).


Um encontro deu-se fora do (re)canto porque ser inaceitável não levar os participantes para conferir a exposição Atlântico Vermelho, de Rosana Paulino, no Padrão dos Descobrimentos. Mesmo não sendo africana, mas por ser negra, (re)conhecemos a arte desta brasileira e a viagem submarina realizada ao longo do primeiro módulo. A conexão Arte, Ciência, História e Poder tornou-se ainda mais forte. Parte indiscutível, parte questionável.


Foi no encontro dedicado à poesia que percebemos a preguiça e a riqueza de ler. Trinta poemas - escolhidos com dificuldade - foram lidos e ilustrados individualmente antes de serem (re)lidos em grupo. Ler e falar versos de autores africanos dos países "lusófonos" foi imprescindível para sentirmos a África e suas lutas - pela(s) independência(s) e contra a(s) dependência(s)!


Dois exercícios fotográficos ganharam lugar especial: o primeiro foi visualizar vinte capitais africanas por meio de fotos aéreas - bem distantes daquela tríade fome-miséria-guerra -; o segundo foi um passeio pelas ruas do Cacém a fim de registrar a presença negra e organizar a série Preto no Branco. Imagem é tudo!


Mergulhos dados, individualmente e em grupo, promoveram o combate dos próprios pré-conceitos e listaram algumas ideias e expressões racistas que precisam desaparecer do imaginário coletivo. Sem essa luta atenta e diária, os pré-conceitos permanecem e nada muda. Crime é crime!


Todos os mergulhos ganharam espaço na exposição final. Além deles, a produção plástica e individual de todos os participantes que chegaram ao fim da caminhada. Os resultados são surpreendentes - para mim e para os próprios participantes, acredito! - e refletem bem esse passeio na profundeza de um passado afogado. Aprecie sem moderação!


Resiliência, Diana Fernandes.


Marioneta de escravos, Eunice Rodrigues.


Onipresença, Danilo Cardoso.


Savana, Wallace Souza.


Sagrado Baobá de Oxalá, Juliano Bezerra.


Negra-flor, Tarcila Bezerra.


Riquezas de África, Taise Bezerra.


[Quantidade não é qualidade em canto nenhum deste mundo. Obrigado a todos pela atenção, pela escuta, pela paciência e pelo respeito. De coração!]

Odeio o Ano Novo


Todas as manhãs, ao acordar mais uma vez sob o manto do céu, sinto que para mim é o primeiro dia do ano. Por isso odeio estes anos novos a prazo fixo, que transformam a vida e o espírito humano numa empresa comercial, com prestação de contas, balanço e previsões para a nova gestão.

Eles fazem com que se perca o sentido de continuidade da vida e do espírito. Acaba-se por acreditar a sério que entre um ano e outro existe uma solução de continuidade e começa uma nova História; fazem-se promessas e projetos, as pessoas arrependem-se dos erros cometidos, etc. É um equívoco geral que afeta todas as datas.

Dizem que a cronologia é a ossatura da História. Pode-se admitir que sim. Mas também é preciso admitir que há quatro ou cinco datas fundamentais, que qualquer pessoa conserva gravadas no cérebro, datas que tiveram efeito devastador na História. Também elas são primeiros dias de ano. O Ano Novo da História de Roma, ou da Idade Média, ou da Era Moderna. (…) São como montanhas que a humanidade ultrapassou de sopetão para entrar num novo mundo e numa nova vida.

Com isto, a data converte-se num fardo, um parapeito que impede que se veja que a História continua a desenvolver-se de acordo com uma mesma linha fundamental, sem interrupções bruscas, como quando o filme se rompe no cinema e se abre um intervalo de luz ofuscante. Por isso odeio o ano novo.

Quero que cada manhã seja um ano novo para mim. A cada dia quero ajustar as contas comigo e renovar-me. Nenhum dia previamente estabelecido para o descanso. As pausas escolho-as só, quando me sinto embriagado de vida intensa e desejo mergulhar na animalidade para extrair um novo vigor. Nenhum disfarce espiritual. Cada hora da minha vida gostaria que fosse nova, ainda que vinculada às horas já passadas.


Nenhum dia de júbilo coletivo obrigatório a ser compartilhado com estranhos que não me interessam. Só porque festejaram os avós dos nossos avós, etc., teremos também nós de sentir a necessidade de festejar? Tudo isso dá náuseas.

Espero o socialismo também por esta razão. Porque mandará para o lixo todas estas datas que já não têm nenhuma ressonância no nosso espírito. E se o socialismo vier a criar novas datas, ao menos serão as nossas e não aquelas que temos de aceitar sem benefício de inventário dos nossos ignorantes antepassados.

Antonio Gramsci
Turim, 1 de janeiro de 1916.