A experiência da Graduação

 

Foi em 2002, aos 17 anos, que iniciei os estudos académicos. Passei em História (FFPNM/UPE) e não em Publicidade (UFPE), como desejei e planejei. Livrei-me do fardo de participar da empresa da família paterna e mergulhei de peito aberto na Educação: estudar, ler e partilhar conhecimentos parecia-me o melhor caminho para viver e sobreviver. Entrei imaturo, como a maioria, em um curso noturno onde quase todes trabalhava ao longo do dia antes das aulas - como eu, a partir do segundo ano. A grande maioria dos estudantes [dos cursos de Biologia, Geografia, História, Letras, Matemática e Pedagogia] deslocava-se de suas cidades para a cidade de Nazaré da Mata. Toda semana. Perdeu o ônibus, público ou privado; perdia a aula. Rotina para fortes!

O primeiro ano foi fundamental para nos inserir no mundo universitário: Introdução aos Estudos Históricos, Pré-História, História Antiga, Fundamentos da Geografia, Língua Portuguesa I e II, Filosofia Geral, Antropologia Cultural I e II e Metodologia Científica. IEH, Filosofia Geral e Pré-História julgo como as melhores para a minha formação nesta primeira etapa. No segundo ano: História Medieval I e II, Civilização Ibérica, História das Ideias Políticas e Sociais, América Pré-Colombiana, História do Brasil I, Psicologia da Educação (Desenvolvimento) e História Moderna I. Já no terceiro: História da América II e III, História do Brasil II e III, História Moderna II e III, Didática I e II, Psicologia da Educação (Aprendizagem) e História Contemporânea I.

Desde o primeiro ano, participei de eventos acadêmicos - tanto organizados por instituições como por estudantes. Mas, foi no terceiro ano que, melhor informado, procurei uma forma de colocar em prática o que estudava: procurei projetar e desenvolver uma pesquisa. Para isso, foi necessário aproximar-me mais da área da Pedagogia - uma vez que me identificava mais com as disciplinas da Educação do que com as técnicas da História, caso não-comum. Inserido em um contexto peculiar, decidimos, eu e a Prof. Dra. Sandra Montenegro, verificar qual era o perfil social dos estudantes da faculdade que ingressavam e que concluíam os cursos. A pesquisa, sem financiamento, tinha como título A universidade pública e a formação docente: funcionalidade e repercussão social e os resultados permitiram constatar que: a) os cursos de licenciaturas serviam de "segunda opção" para os estudantes de classe média e da capital - que não foram aprovados em outras universidades -; b) alguns cursos eram marcados ou pela presença de homens (Matemática) ou mulheres (Pedagogia); c) os cursos eram os únicos existentes no interior, logo únicas opções para os arredores; d) a maioria discente concluía os cursos - exceto, Biologia, Geografia e Matemática -; entre outras constatações. Essa pesquisa foi apresentada no 5º Congresso Nacional de Educação e no III Fórum Mundial de Educação.

As aulas serviram para ler, os estudos para escrever e os eventos acadêmicos para falar e trocar. Um conjunto de competências e habilidades é oferecido na Academia. Experimentei ainda a vivência do movimento estudantil - sempre ligado à área da Cultura. As assembleias, as reuniões, as pautas, as ações, tudo ensinava como conquistar o que se quer fortalecer e modificar.

Foi assim que descobri como realizar, juntamente com estudantes de diferentes cursos, um evento artístico a partir de questões acadêmicas - com o  dinheiro público e por dois anos consecutivo: Primeira Talvez Última Mostra de Artes Visuais (2004) e Segunda Talvez Última Mostra de Artes Visuais (2005) - sem registro, infelizmente. No primeiro ano, algumas instalações foram espalhadas por toda a universidade. Enquanto no segundo, contou-se também com a presença de algumas obras de estudantes-artistas, de outras instituições, assim como apresentação de música, peça de teatro e sarau. Tais mostras, por sua vez, não tiveram vínculos com gestões estudantis e partidos políticos.

Para encerrar o último ano: Estrutura e Funcionamento da Educação Básica, História do Brasil IV, Sociologia I e II, História Contemporânea II e III, Prática de Ensino I e II e História Econômica Geral e do Brasil. Foi neste ano que consegui participar melhor das aulas: escrevendo e falando. No início, ainda muito imaturo e tímido, não fazia sentido interagir. Foi preciso, primeiro, aprender a interagir. Nunca reprovei nenhuma disciplina, mas senti muita dificuldade em algumas: História das Ideias Políticas e Sociais, História da América e História Moderna. A maioria docente mostrou-se bem acomodada e rotinizada: adoravam seminários e evitavam explanar. Apenas recém-chegades demonstraram mais autonomia, criticidade, dinamismo e propriedade.

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Meu estágio supervisionado foi realizado na Escola Elanor Roosevelt [IPSEP - Recife/PE]. Foi meu primeiro contato com o ensino público regular. Interessante observar de perto a realidade educacional. Recusei-me a procurar assinaturas de docentes e dirigentes para formulários. Para mim, era preciso passar por essa experiência.

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Avalio como um bom curso - acredito que melhor nos anos seguintes depois da reforma curricular (pós-10.639/03). Um curso bastante discriminado, na minha época, por ser ministrado no interior e não na capital. De onde brotaram vários e comprometidos professores, hoje mestres/mestras e doutores/doutoras - atuantes na rede pública e privada e dentro e fora da Academia.

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A biblioteca era, por demais, limitada.

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Principais em minicursos e eventos acadêmicos:

A pesquisa no processo de formação de professores (FFPNM/2005)
Estética e procedimento na cena [teatral] brasileira (Festival de Teatro - PCR/2005)
História Oral (XVII EREH/ UFAL/2005)
O papel do educador no mundo globalizado (FFPNM/2005)
Linguagens alternativas para o Ensino da História (XIV ENEH/ UFRPE/2004)
Barroco: estilo literário de época ou constante humana? (XI EREL/ UFRN/2004)
História da Escravidão no Brasil (Semana de História - FFPNM/2003)
Paradigmas ds explicação histórica: dos narradores gregos aos da pós-modernidade (IV  Encontro Estadual da ANPUH/ UFRPE - 2003)
Historiografia Pernambucana (I Seminário de Historiografia - FUNDAJ/2002)
Heróis e vilões: quem é quem na História do Brasil? (FFPNM/2002)
Teoria e Crítica da Arte (XXII ENEH - UNICAMP/2002)
História da África (Semana de História - FFPNM/2002)
VI Semana Gilberto Freyre (FUNDAJ/2002)

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Ministrei o minicurso História, Educação e Chico Buarque: um novo olhar sobre o período militar rumo à (re)construção do cotidiano, sob orientação da Prof. Dra. Gilda de Freitas Araújo e e em parceria com dois amigos-acadêmicos, Rafael Bastos [História] e Sebastião Soares [Letras], no XVI Encontro Regional de Estudantes de História na Universidade Federal do Ceará.

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É preciso ressaltar que os anos da graduação são bastante transformadores porque universidade não é escola: você encontra-se mais livre e seus familiares mais longe. A realidade é outra, a rotina é outra. As regras são outras, as descobertas são outras. É preciso tornar-se cada vez mais atento, comunicativo, organizado e responsável. Conheci várias cidades e estados do Brasil por meio de eventos académicos - de forma acessível e coletiva. Drogas lícitas e ilícitas, experiências sexuais e crises existenciais fazem parte da estrada. E, com tudo isso, não se aprende só História como aprende-se também a escrevê-la; a viver em sociedade, a jogar com a realidade.

História com/da Arte

 

Foi nessa escola particular e pequena (Camaragibe/PE) que, pela primeira vez, entrei numa sala de aula regular como professor de Educação Artística por um semestre. Ou seja, minha primeira experiência em sala de aula não foi como professor de História. Aproveitei o convite/oportunidade e combinei com as outras atividades desenvolvidas no momento e ligadas à arte-educação (animação cultural e alfabetização).

Foi nessa escola que senti a dinâmica de uma escola (planos de aula, aulas, acompanhamentos individuais, revisões, avaliações e reuniões). Foi nessa escola que comecei a perceber que não há um abismo apenas entre escola pública e particular, assim como entre escolas públicas e entre escolas particulares. O atraso de pagamento era constante e as formas de pagamento diversas - onde o diretor preocupava-se mais com a banda de brega que produzia. Foi nessa escola que, pela primeira vez, tive(mos) de lidar com a morte precoce de um aluno, o José.

A metodologia era simples: trabalhar o artístico por meio de temas históricos. Era o começo dessa união entre criação e conteúdo que passei a não ignorar e a sempre estimular. Formas outras de retratar temas históricos são tão - ou mais - potentes do que lições de casa, resumos no quadro e provas. Um caminho sem volta para mim - sem ainda perceber - como a paixão pelo Fundamental (II).

Apenas depois dessas três experiências (animação cultural, alfabetizador e professor de Educação Artística) é que mergulhei em sala de aula como professor de História. Não mais na minha terra, nos arredores da minha cidade, mas em São Paulo.

Programa Brasil Alfabetizado


No segundo semestre de 2003, a Faculdade de Formação de Professores de Nazaré da Mata (FFPNM/UPE) fez uma seleção de licenciades para participar do Programa Brasil Alfabetizado - organizado pelo Governo Federal com parceria estadual e municipal. Depois de uma formação especializada sobre o método freiriano e algumas informações técnicas, tivemos de escolher onde iríamos alfabetizar: eu escolhi uma sala de jovens em situação de reclusão na antiga Fundação da Criança e do Adolescente [Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco].

Tínhamos seis meses para alfabetizar. Em encontros semanais; totalizando dez horas. Para isso, teria de organizar as atividades de acordo com as da fundação. Para o deslocamento, era preciso pegar o ônibus institucional bem cedinho. O material, muito bem elaborado - para um período maior do que o estipulado - era todo disponibilizado pelo projeto.

Como conhecer os jovens sem temer? Os funcionários dos setores educacional e psicológico da  fundação ofereceram algumas orientações antes das aulas começarem. Fui apresentado pela responsável do serviço educativo, acompanhado do agente penitenciário, até a sala. Apresentei-me e começamos. Tudo tranquilo no primeiro momento. O desafio havia começado.

A partir do segundo encontro, algumas provocações testavam-me: "por que o senhor acorda cedo para vir até aqui se a gente vai continuar roubando e matando?". Deixei claro que todos eram meus alunos como os que tinha fora daquele espaço. Todos iguais. Não queria saber os motivos que trouxeram todos até ali. Não cabia a mim. Minha presença tinha outro objetivo. Muito maior. (Entretanto, todos os outros funcionários conheciam os jovens pelos "seus crimes"). (Celas eram reservadas para os mais "perigosos" e para os gays e trans. Consequentemente, excluídos do programa). (Muitos eram alfabetizados. Alguns não participavam de todas as aulas: iam quando queriam. Mas, de uma turma de 27 alunos, a maioria comparecia).

Quando eles organizavam rebeliões, cozinheiros e professores eram informados com antecedência. Aconteceram umas duas durante o período de alfabetização. Não houve aula. Quando havia alguma atividade pré-programada da fundação, também não havia aula. Além da alfabetização, havia aula de artesanato, capoeira e percussão. Sempre aproveitei para fazer as atividades não só com papel e lápis assim como não ficar apenas traduzindo sons no quadro. Era preciso dialogar. Humanizar.

Tesoura e apontador exigiam maior atenção. Ao recolher, era preciso de verificar um por um. Isso porque as lâminas são favoráveis a criação de ferramentas revolucionárias. Para as atividades geravam ótimos resultados. A relação som e imagem é uma ótima relação para a alfabetização. Sempre ganhavam destaque armas, bebidas, imagens religiosas - Maria e Jesus -, marcas de carros-relógios-roupas e mulheres. Exalava-se fé e ostentação: paradoxo denso e tenso.

Os mais interessados eram aqueles que resolviam o momento para converter-se: aprender a ler para ler a Bíblia. Vários assistiam a aula como se nada tivesse acontecido e eles estivessem na sua escola. Com as ocorrências e dilemas, preferi centrar-me na valorização da leitura de (seus) mundo(s). Assim, passei a ser provocado por eles ao questionar como se escreve assassino, cadeiahomicídio, latrocínio, revólver, tráfico e concentramo-nos a conversar sobre temas sociais. Ao longo do caminho, íamos conversando com as letras, as palavras e montando algumas frases. Palavras-geradoras, temas-geradores.

Para finalizar a caminhada, avaliei os alunos um por um sem seguir a avaliação final. Como trabalhar com o método freiriano e avaliá-los de uma forma ortodoxa? Consegui alfabetizar cinco alunos - o que foi uma felicidade; um sucesso. Muitos precisaram reforçar os aprendizados com mais uma temporada do programa sem mim. Uns seis desistiram. Foi depois desse desafio, entre 18/19 anos, que segui para a sala de aula da escola regular - depois de uma experiência com arte-educação e com alfabetização. Seria escola, prisão; sala, cela? O foco tornou-se "ser pra fora".


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Lembro que era muito comum escutar a mesma música quando alguns lavavam os pavilhões enquanto a aula acontecia. Era comum segurar o choro. Os pavilhões e a sala, separadas por um grande pátio com uma quadra de futebol e embaladas por esta canção:

Dias melhores
Jota Quest

Vivemos esperando
Dias melhores
Dias de paz
Dias a mais
Dias que não deixaremos para trás

Vivemos esperando
O dia em que seremos melhores
Melhores no amor
Melhores na dor
Melhores em tudo

Vivemos esperando
O dia em que seremos
Para sempre
vivemos esperando
Dias Melhores pra sempre
Dias melhores pra sempre
Pra sempre

Vivemos esperando dias melhores
Dias de Paz
Dias a Mais
Dias que não deixaremos para trás

Vivemos esperando
O dia em que seremos melhores
Melhores no Amor
Melhores na Dor
Melhores em Tudo

Vivemos esperando
O dia em que seremos
para sempre
Vivemos esperando
Dias Melhores pra sempre
Dias Melhores pra sempre

Anos depois, encontrei com um deles, à noite. Numa barraca de cachorro-quente no centro do Recife. Trabalhando com familiares. Reconheceu-me logo, (re)apresentou-se no final e recusou o pagamento. Ao lembrar, disse: "você foi meu aluno como todos os outros que tive; tenho de pagar como todos os que aqui comem". Abraçamo-nos, desejamos o melhor para nós e seguimos.

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Até tentei uma segunda turma em outro contexto com a amiga-professora Juliana Xavier: um turma pequena de senhoras evangélicas dentro de um centro espírita (Várzea, Recife). As receitas culinárias tornaram-se um elo entre elas: aulas de leitura/escrita e outra para cozinharmos. Durou muito pouco porque precisei deixar o projeto para finalizar com mais atenção e compromisso outro - de arte-educação. Mas ficou nítida a dinâmica ampla e substancial das mulheres para dentro e fora de suas famílias. Sem elas, nada.

Animação Cultural e a História


Minha primeira experiência como professor foi em uma escola pública “modelo” [Escola Municipal do Engenho do Meio (Recife/PE)], fora de sala de aula e do ensino formal; comecei minha carreira docente como animador cultural. Em outras palavras, cabia a mim, por meio do Projeto de Animação Cultural [PAC] supervisionado pelo Departamento de Atividades Culturais e Desportivas [DACD] da Secretaria de Educação, oferecer aos alunos atividades “socioeducativas”, fazendo uso de linguagens artísticas, no horário oposto ao das aulas regulares e também aos sábados, sob a coordenação da escola e em sintonia com seus projetos durante, no máximo, dois anos – segundo o contrato. Além disso, era obrigatória a participação do animador cultural nos encontros semanais com os coordenadores do projeto, responsáveis pelo acompanhamento das práticas e pela formação de todos, e nas capacitações semestrais. O convite para as atividades, desde o início, foi feito e refeito para toda a escola, sala por sala, insistente e periodicamente. Entretanto, o começo não foi fácil.

Os primeiros passos

Nos primeiros meses, os encontros aconteciam, principalmente, aos sábados. Isso porque, dentre inúmeros motivos, era difícil para alunos de 6 a 17 anos, organizarem-se para as atividades do projeto mais as suas aulas “normais”. Ninguém aparecia durante a semana, mesmo que a maioria morasse nos arredores da escola, a gestão familiar carecia de estrutura e organização. Por outro lado, os colegas poderiam insistir em casa e se organizar para conferir juntos o que acontecia nas aulas do novo professor aos sábados – a escola já vinha tendo experiência com a animação cultural, nenhum, contudo, tinha durado tanto tempo na escola até o momento e teve como objetivo formar um grupo fixo: era muito comum os animadores culturais desejarem ser ou serem transferidos de escolas por diferentes razões; estudantes tinham o receio de participar de algo que não iria continuar.

Aproveitei os sábados, portanto, como porta de entrada para os encontros semanais planejando um dia repleto de atividades plásticas sobre festas populares e temas transversais – como Carnaval e São João, principalmente; cidadania, diferenças sociais, gênero, identidade, meio ambiente, tolerância cultural e religiosa e violência urbana, entre outros; de dinâmicas de grupo a alongamentos e brincadeiras, de muita música e sem esquecermos a hora da merenda, claro: um dos atrativos que passou a servir como momento para reforçar o convite e os laços. Era muito mais prazeroso do que cansativo.

A rotatividade de alunos foi significativa nos primeiros meses, dificultando a formação de um grupo fixo e facilitando minha aproximação com diferentes perfis de alunos - como alguns da Educação Especial que me apresentaram e emprestaram um dicionário de LIBRAS para estimular uma possível e futura convivência. Foi preciso, então, planejar bem a (minha) primeira colônia de férias (junho de 2003), para que conseguíssemos alcançar outros objetivos.

As colônias de férias e o surgimento do grupo Culturação

Cartolina e outros papéis, tintas e pincéis, giz de cera e lápis de cor, jornais e revistas para recortar, tesoura e cola. Diversas imagens específicas previamente selecionadas, uma caixa de som e mais músicas (a playlist era selecionada por mim, mas os alunos tinham o momento de colocar as músicas que quisessem na hora da merenda). Bola e jogos dentro da escola e na praça ao lado do colégio (na frente da Colônia Penal Feminina Bom Pastor). E, para descansar, depois da merenda, uns alongamentos, uns movimentos e um bate-papo sobre cultura popular: as danças e suas histórias.

Foi durante a colônia de férias que eu conheci melhor aquela realidade escolar, enquanto os alunos passaram a achar as atividades “bacanas”, “divertidas” e “legais” – sempre destacando a necessidade de uma “rotina do encontro”: hora de brincar, hora de fazer, hora de escutar, hora de falar, hora de alongar e hora de mexer o esqueleto. Uns começaram a chamar outros - da própria escola, de outra ou da vizinhança – para os encontros semanais e alguns desejaram e comprometeram-se em formar um grupo fixo. Esse grupo, por sua vez, teve como princípio ser coletivo: todos participavam e todos preservavam. Não havia dono. Todos eram responsáveis por ele.

Esse grupo consolidou-se ao longo do semestre e da segunda colônia de férias (janeiro de 2004). Para essa, eu e os alunos pensamos em tudo juntos. Das atividades dentro da escola e fora dela à grande novidade: um passeio por alguns pontos turísticos (Monte dos Guararapes, Marco Zero e Museu do Carnaval) com direito à lanche e ônibus. A condição para participar do passeio era participar dos encontros – se "comportar bem" e apresentar a autorização de um responsável. Foi ótimo: os alunos adoraram porque muitos não conheciam as regiões da sua cidade e suas histórias por viverem apenas no e pelo seu bairro. 

Contudo, os principais alunos do grupo mudaram de escola e foi preciso, no início de mais um ano letivo, renová-lo. Essa renovação fez brotar um grupo mais coeso formado por meninas e meninos de idades e turmas diferentes – vale a pena destacar a participação de alunos “não-ouvintes”; chegando um deles a se destacar e dançar na frente dos demais. Durante a semana, os encontros eram dedicados ao grupo fixo e, aos sábados, aberto a todos. E, como a palavra cultura sempre era muito citada - e um nome para o grupo era fundamental e preciso - surgiu o grupo “CulturAção” - sugerido por um aluno e escolhido pela maioria. Acredito ter sido o segredo destacar a todo o momento que “se há grupo era porque a participação de todos era muito importante”. Resumindo: se todos participavam, tudo era nosso. Se surgisse algum tipo de reclamação, por exemplo, todos tinham falhado e o grupo tinha errado. Era preciso cuidar do que tinha acabado de surgir e poderia enfraquecer/desfazer.

As primeiras apresentações: mulher, indígenas e ciranda

As primeiras apresentações foram “encomendadas” (Dia Internacional da Mulher, Dia dos Povos Indígenas e Festa de São João) pela direção da escola. Em outras palavras, o grupo foi inserido nos eventos e ganhava o espaço para se apresentar no palco para toda a escola. A primeira foi bem simples: oferecemos às mães uma coreografia com a música Rosa, de Pixinguinha e cantada por Marisa Monte. Mais emocionante do que clichê [sem registro]

O resultado foi mais do que positivo e, depois da “estreia”, foi muito mais fácil retomar a minha proposta inicial: trabalhar as danças populares. Por isso, para o Dia dos Povos Indígenas, organizamos uma coreografia bem curta e diferente com a música Koi Txangaré - um canto bem “estranho” para os alunos e musicado pelo grupo Mawaca [sem registro]. Fomos mais além do que somente montar uma apresentação: conversamos sobre a história indígena, pensamos as pinturas corporais e confeccionamos as roupas com palhas de coqueiro. Foi um sucesso e nos fez ir um pouco mais além.

A terceira foi um coco para o São João [sem registro]: o número de participantes foi maior e chamou mais atenção da escola. Passava a ser interessante participar daquele grupo porque ele estava a crescer não só em quantidade. A música usada foi Coco da bicharada, de Antônio Carlos Nóbrega, bem lúdica, o que tornou a apresentação bem engraçada. O grupo, então, já se mostrava pronto para aprender aquele ritmo mais rápido que sempre animava tudo nos encontros e nas colônias de férias: o frevo. As acrobacias e a sombrinha tornaram-se o alvo do grupo e, assim, montamos a quarta apresentação com a música Pé de camurça, do grupo armorial SaGrama.



A parceria dos professores e as culturas de matriz africana

Os Saltimbancos pelos professores na Semana da Criança de 2014.

O grupo dava cada vez mais certo e mais uma colônia de férias estava se aproximando (julho de 2004). Dedicamos toda ela as manifestações culturais de matriz africana – pelo simples fato de serem múltiplas, próximas ao frevo e familiar ao perfil dos alunos, da escola e do bairro. Aprendeu-se um pouco de capoeira, maculelê, afoxé, maracatu e samba. Discutiu-se a história das danças e misturamos tudo com as nossas histórias - assim como pensamos e repensamos, superficialmente, o que seria a tal “macumba”. Fizemos um mix com tudo, ensaiamos muito e apresentamos a música Rabecada, mais uma do SaGrama, no Dia da Consciência Negra. Após a apresentação, um episódio simbólico, inesperado e inesquecível aconteceu: a diretora falou sobre a importância e a presença da cultura negra na sociedade e perguntou, ao microfone, “quem trouxe tudo isso para nós?”. Em coro, os alunos responderam: “Tio Danilo”! Claro que a resposta “certa” seria “os africanos escravizados” ou “os negros”. Enfim, continuamos a trabalhar...



Em uma das reuniões de professores surgiu a ideia de selecionar aqueles alunos mais “bagunceiros”, “capetinhas” e “difíceis” para participarem de alguns encontros do grupo. O objetivo era, digamos, “acalmá-los”. E deu certo. Só que os alunos não ficaram mais calmos: eles aprenderam com os demais do grupo que era preciso respeitar a hora de brincar, a hora de fazer, a hora de escutar, a hora de falar, a hora de alongar e a hora de mexer o esqueleto. Sem esse respeito, não seria possível o encontro. Respeitar esses acordos, afinal, era e é fundamental dentro e fora de sala de aula. Conclusão (minha e de algumas professoras): muitos passaram a “chamar a atenção” de outra forma, respeitando mais os acordos em sala de aula e participando do grupo e das suas participações no palco da escola.


A despedida: colônia de férias, festival de dança e apresentação contemporânea

Já não tínhamos tanto tempo. Apenas mais uma colônia de férias (dezembro de 2004) e o início do ano – até o mês de maio. Mas era preciso fazer algo a mais para fechar com chave de ouro e celebrar toda a árdua e meteórica caminhada. Por isso, juntos, usamos a colônia de férias para fazer tudo o que já fazíamos e organizar um festival de dança na escola – contando com a participação de outros grupos, de outras escolas, de outros animadores culturais.


Relembramos as apresentações e as coreografias, reorganizamos os elencos, confeccionamos e fizemos o acabamento de todos os adereços e vestimentas com materiais reaproveitáveis. Selecionamos – eu, a direção, as professoras e o departamento - um sábado, organizamos os convidados, solicitamos os transportes e elaboramos o roteiro das apresentações. O nome dado ao festival foi “Eu e o Outro” (março de 2005) e só não deu mais certo porque não deixou nenhum registro comigo – sendo filmado e fotografado pela escola.

Como ainda faltava um tempo para o fim do contrato depois do festival, decidi avaliar essa caminhada com os alunos visando montar uma apresentação diferente e um pouco mais reflexiva para nossa despedida. Conversamos bastante sobre a realidade fora e dentro da escola a partir das manchetes de um jornal popular bem popular e “sangrento”, a Folha de Pernambuco, e pensamos bastante sobre tudo ao som da música Paciência, de Lenine. Foi assim que surgiu uma coreografia “contemporânea” - mesmo eles não entendendo bem a linguagem ou não – cheia de movimentos, com maquiagem, vestindo notícias e tendo como companheira uma cadeira escolar. Com uma música densa, gestos sensíveis e um silêncio por toda a escola, encerramos a nossa desafiante e surpreendente trajetória.




[Não foi nada fácil para um professor (bastante novo, 18) no início da Graduação. Foi um excelente primeiro desafio (visto também que a professora de Artes já matinha um grupo de dança). Foi preciso amadurecer, (pessoal e) profissionalmente, rápido demais para perceber que sem o trabalho em equipe a docência não consegue muito ou quase nada. Junto é bem mais fácil. Lógico que contei também com a sorte: a eficiente gestão da escola, a competência e a dedicação da equipe de professores e o afeto dos funcionários e das merendeiras foram fundamentais. Em contrapartida, foi difícil constatar a distância existente entre a escola, os alunos e suas próprias famílias. Vale destacar que, por um tempo, outra animadora (de teatro), Ana Paula, esteve na escola por um curto período e trabalhamos juntos e em paralelo. Mantenho até hoje o contato com algumas educadoras e espero muito que todos os alunos e funcionários estejam bem!]